Número 40

8 de Junho de 2024

THESE FOOLISH THINGS

#2

LUÍS JANUÁRIO

1. LAT Machine

No vale de pedra a penitenciária

Ao longe, na colina, uma mulher estende a roupa

Vinte e três, uma T shirt larga

Trinta e seis, um par de jardineiras

Trinta e sete, leggings azuis

Quarenta e dois, soquetes.

Os braços da mulher apontam para lá do vale

Traçam duas linhas de fuga.


2. Adução

Um gato doméstico, infantil, vigia a porta do apartamento e apanhando-a aberta, foge. Os miúdos da casa perseguem-no. Ignora o chamamento e foge. Para a garagem, na cave funda do prédio. Da garagem para um beco que conduz a uma ruína. Não consegue alimentar-se. Ignora que todos os territórios de caça estão ocupados por bandos de adultos agressivos. Não é capaz de reconhecer os caminhos de volta. Só sabe esconder-se. Resumir-se. O instinto que o levou a fugir vai destruí-lo, juntamente com o carinho dos humanos.


3. Abdução

As ruas da sua cidade vê-as como ninguém. Montes Claros, Montarroio, Celas, a Cumeada. Sabe de cor o nome das ruas e, antes do nome das ruas, o nome dos lugares. Viu nascer algumas delas. O Ginásio, onde agora treina, foi uma igreja, onde a sala de Body Combat era o altar. Antes da igreja, foi o terreno anexo ao Matadouro Municipal. Um dia, os garotos mais velhos da Conchada penduraram-se no elétrico da linha quatro, que parava e invertia o sentido junto à entrada da rua Machado de Castro, justamente em frente do Matadouro. E quando regressaram, desceram a rua António José de Almeida com uma bexiga bovina horrivelmente insuflada. Jogaram depois à bola, no início da rua Nicolau Chanterenne, em construção.

Cada rua cresceu paralela a uma outra. A Almeida Garret corre paralela à António de Vasconcelos e à Guerra Junqueiro, e esta à Avenida Sá da Bandeira, a partir da rua Ocidental de Montarroio. E é paralela à rua António José de Almeida, que agora vai até ao Largo de Celas. Acima delas está a TSF, a rua Adolfo Coelho, onde o Távora veio morar, na adolescência. Para o outro lado, a Avenida do Liceu D. João III tem, na cota acima, a Pinheiro Chagas e acima de todas está a Cumeada, a Avenida Dias da Silva, onde passava o elétrico três, dos Olivais, e a linha sete, do Tovim.

Estas linhas cruzam-se no campo de visão do homem que olha sem as ver, durante as três séries de doze repetições da máquina de abdutores, propícias a levar o oxigénio para as coxas e abrir, livre, a janela da memória.


4. Total Abdominal

É capaz de se ver, no cárcere da Penitenciária. Do isolamento, que fica nas caves, uma janela alta para um pátio interior, que não inclui o céu.

Conheceu outras janelas assim.

A janela de um calabouço da PJ de Lisboa, que dava para um pátio onde dois mastins acasalavam, entediados. Desenhos a mijo gravados nas paredes. Restos do jornal A Bola confundidos com a cal. Grafitis de arrependidos, que se auto intitulavam ratos de automóveis e prometiam às mães um futuro exemplar. A janela da prisão de Caxias, tendo como horizonte um muro baço. A janela da sala de interrogatório e tortura na rua António Maria Cardoso, da qual se avistava a refinaria do Oriente.

Na cave do Palácio da Justiça, à Rua da Sofia, a cela da PJ de Coimbra não tinha janela e a parede do corredor era de grades. Na cela ao lado, um rapaz punhetava-se com júbilo. Nunca o vi, embora estivéssemos separados por uma parede fina, a classificação do crime e a forma como fazíamos avançar o tempo.


5. Chest Press

Desde a queda do Império Romano do Ocidente até ao Renascimento não houve paisagens. Assim, ninguém se demorava a apreciar os fundos dos quadros. A desordem de um quintal abandonado onde cresce uma figueira, só pôde existir a partir do século XIX. Desígnios que pareciam mortos. Vinham os jardineiros e arrancavam-nos.


6. Leg Curl

A mulher é uma cuidadora de existências caladas. Lida com a solidão contida, o silêncio. Mas logo notou, atrás do abandono a resistência, a sobrevivência, luta e coragem. E cresceu nela um orgulho herético.


7. Balneário

A água separa o cabelo já escasso

o gel dois-em-um espalhado pelo corpo

até aos sítios mais recônditos.

Um momento indeciso da sensação 

que não percebe se é de prazer ou dor.


*


Papel de embrulho

Bilhetes antigos, papelinhos, recados

que ninguém leu

senão hoje.

Dizem: “logo, no Mil Olhos”.

Dizem: “ traz a lanterna”.

Dizem: “O nitrato de prata

sai com quê?”

E agora

os voluntários da Ephémera

são atravessados pela urgência de os cumprir.


*

Ele de jeans low rise

com cuecas arco íris.

Ela calças de ajuste extra slim

em pele sintética

com o pregueado das nádegas desenhando

o olho do cu.

Sobem do Tube de mão dada

reunidos pelos coses

ou pelo

enunciado metalinguístico.


*

Os lábios de Ana em vermelho absoluto

esborratado

e os olhos delineados a lápis preto

esborratado

tipo Rebel Rebel de Diamond Dogs

ou dançarina holandesa de bailado contemporâneo

ou Stella Tennant do fim dos anos 90

ou Rihanna no lançamento de red lipstick

ou uma apropriação de Morimura Yasumasa.

Sentada no chão em High Holborn

come morangos com as mãos

comprados a mulheres que anunciam

Best straws in England

e esborrata os lábios

enquanto se interroga

sobre se o sumo dos morangos

tem um fator de proteção para

lábios com cieiro.


*

Noite dos Museus

Greve da Função Pública

As obras da Arte saqueadas

E à porta do Louvre

um sem abrigo ri-se

— Nunca foram tão apreciadas!

Na Tate Modern,

um homem mijou

na Fonte de Duchamp.

Era uma performance.