Destrossos

19 de Março de 2021

65-43-JM

SANDRA COSTA

A tua última viagem poderá ser o meu

primeiro regresso. Não sei quem conduz

quem. Há em nós uma dança imperceptível,

os dois imobilizados no ponto de embraiagem

perfeito, os dois articulando, a cada curva

desfeita, os acordes dos gestos que nos afastam

e nos aproximam das paisagens imprevistas,

dos percursos dos dias, em trânsito,

que fazem de nós uma estrada.


A tua última viagem, já sem o musgo

à volta do farol que iluminava, intermitente,

esse ponto morto que é o meu coração,

mas ainda com as veredas, ainda com as fugas,

de óleo e de todas as espécies, que me deixam

sempre em desalinho, em desconcerto,

desmerecendo quer a vertigem,

quer a resignação.


A tua última viagem, destino de abate,

deixa em mim a fragrância de um amor

que não tem horizonte, a decomposição

dos excertos de frésias, das calendas gregas,

não das romanas, e dos múltiplos aforismos

que murmuram a cal apagada, a cal que

se submete à acção da água, branca

e inodora, a que reescreve a acidez dos solos

e a do silêncio com que me distancio

no teu espelho retrovisor, sobretudo ele,

acidulado por esta melancolia que nos

indefine.