Toda a palavra é uma resistência.
Agustina Bessa-Luís
O festival literário Correntes d’Escritas teve, por estes dias, a sua 25ª edição. Dizem-nos os responsáveis que em 25 anos couberam, na Póvoa de Varzim, mil autores, duzentos mil leitores e o lançamento de 500 livros. Mas não é de números que falamos, quando falamos das Correntes. É de palavras. Quantas palavras cabem em 25 anos? É impossível responder. Eis o que sabemos: no ano em que o 25 de Abril faz 50 anos, as Correntes fazem 25. Se é preciso uma vida inteira para contar a Liberdade, foi preciso meia vida para contar todas as palavras que a Liberdade inaugurou.
Nas Correntes, as palavras oferecem-se como iguarias sobre as mesas, onde debatemos com a fome de quem se alimenta de ideias. Os títulos das mesas são ecos das vozes de antigos amantes das palavras: Foge-nos o tempo já de decidir, Deixa-me soltar estas palavras amarradas, Há sempre qualquer coisa que está para acontecer, Não hei-de morrer sem saber qual a cor da Liberdade, Não há machado que corte a raiz ao pensamento, Deu-nos Abril o gesto e a palavra, A Liberdade está a passar por aqui, E um verso em branco à espera de futuro. Aqui, onde as palavras se depõem sobre a mesa, fala-se de Liberdade e de futuro, de pensamento e Literatura. Fala-se dos livros, portas abertas para um debate que convoca cerca de um milhar de trabalhadores da palavra: autores, tradutores, ilustradores, editores, artistas visuais, professores e pensadores. E centenas de leitores devotos. À mesa, 16 nacionalidades diferentes falam uma Língua universal – a da busca e a do amor à palavra.
Nas Correntes, falou-se de mar. Desse horizonte sem fronteiras que, como a Literatura, nos redimensiona face ao mundo. Falou-se do mar da Póvoa de Varzim, do mar que não pede licença para entrar por nós adentro quando, da Avenida dos Banhos, o olhamos com medo e desejo, de perto e de longe. O mar que Agustina descreveu como “familiar, quase austero, mas pleno de Liberdade”, que inspirou tantas páginas e uniu tantos povos como os que, agora, aqui se juntam para juntar palavras e histórias.
Nas Correntes, falou-se de Liberdade – a palavra inaugural. Rosa Alice Branco lembrou-nos que ela pode “passar por aqui como um pássaro, um comboio ou o vento que passa sem deixar rasto”. Francisca Camelo celebrou “aquilo que não teve de ver” e a escritora angolana Telma Tvon partilhou um sonho de Liberdade: “E se amanhã fosse eu, sendo preta, somente realidade indolor?”. Maria do Rosário Pedreira definiu Abril como “um rasgão”, Vera dos Reis Valente chamou-lhe “irrepetível”. Para definir Abril faltam-nos sempre palavras, mas estamos ainda em fevereiro e continuamos nesta corrente, torrente e nascente. Sérgio Godinho lembrou que é a partir de um poema que a canção “começa a existir”, porque no início é o verbo; Amélia Muge fez da palavra um caminho que tem sempre o “intuito de chegar a outra coisa”. António Mota falou das palavras nómadas que “não têm poiso certo, moram em qualquer lado”. Rui Zink confidenciou-nos que foi a palavra Liberdade que o fez, então adolescente zangado com o mundo, descer a rua, no primeiro de Maio de 1974, de mão dada com a Mãe. É uma história que todos conhecemos: quantas vezes as palavras nos deram a mão?
A festa acumulou memórias, palavras, afetos e efemérides: são os 50 anos do 25 de Abril, os 25 anos das Correntes d’Escritas e os 50 anos da elevação da Póvoa de Varzim a cidade. Aos livros juntaram-se concertos, residências literárias, performances, exposições, itinerâncias pelas juntas de freguesia, cinema, intervenções nas montras do comércio local. A maior comemoração é a da palavra que faz Democracia. Este encontro é, acima de tudo, a celebração da escrita como instrumento de resistência e luta, ferramenta de Liberdade, utensílio de futuro. Os escritores visitaram escolas e onde não encontraram leitores plantaram sementes: sempre que uma criança abre um livro, o mundo cresce para acolher mais um leitor.
Por uns dias, a Póvoa encheu-se da massa de moldar o mundo: as palavras andaram à solta pelas ruas, levadas pela ventania do Norte. Com os seus compartimentos internos, os seus quartos secretos, alçapões e sótãos, as palavras permitiram que entrássemos nelas, levados pela mão de quem as trabalha diariamente. Em todas encontrámos uma sombra vigilante, porque a palavra é uma arma usada pelos dois lados da barricada – há palavras que constroem e edificam, palavras que guardam a Liberdade, e palavras que a ameaçam. Mas encontrámos sobretudo esperança. A de saber que enquanto a palavra for ponte para chegar ao Outro, estaremos a estreitar os laços que nos unem. No texto que escreveu para este número da revista das Correntes d’Escritas, Patrícia Portela, diz que “quem tem o dom da palavra tem o poder dos mágicos, e os mágicos, quando se juntam e partilham segredos, tornam-se inquebrantáveis”. Inquebrantáveis como estas Correntes que, em vez de prender, libertam.
Saímos das Correntes d’Escritas a sacudir a areia das palavras. Já passaram uns dias, mas continuo a encontrar em mim grãos persistentes. A areia das palavras, como a da praia da Póvoa, como a da Liberdade, cola-se à pele. Não são grãos de areia: são sementes.