Afirmar “precisava que o dia tivesse 48 horas” ou “as horas do dia escoam-se sem que tenha cumprido o que precisava de fazer” é um perfeito lugar-comum. A forma como nos deixamos enredar pelas exigências vorazes desta vida hodierna encaminha-nos inexoravelmente para uma sensação de vazio ou derrota quando falhamos aquilo a que nos tínhamos proposto. A não ser que… Qual chefe ou sistema informático, nos tornemos seres multitasking, fazendo, cumulativamente, o que nos dá prazer.
O primeiro contacto que tive com a culinária foi… Simplesmente caricato. Nas brumas da memória, ainda vislumbro o episódio. Era verão, tinha onze anos e ia participar com outros colegas no primeiro acampamento. Chegámos a São Cristóvão de Lafões ao início da tarde e, depois de montarmos a tenda em terreno de mato, tarefa que nos ocupou bastante tempo (malandrice dos mais velhos e da inexistência de um manual de instruções!), iniciámos a confeção do jantar. Os ingredientes eram triviais: batatas, cenouras, feijão-verde, ovos e atum; ou seja, íamos fazer uma salada russa. Duas pedras serviam de sustentação à panela, grande o suficiente para confecionar uma refeição para meia dúzia de inexperientes cozinheiros. Recordo-me perfeitamente do prazer inicial que o empreendimento nos despertou, principalmente, das fugazes chamas vivas que as folhas e ramos de eucalipto e pinheiro faziam. O sol pôs-se, a noite cobriu-nos com o seu manto, os outros grupos jantaram. Já tarde, começámos a ouvir os primeiros acordes das violas: era o início do fogo de conselho. À nossa frente, uma panela com água e legumes, finalmente, decidira desistir da provocação e principiara a borbulhar. O relógio estava prestes a assinalar a entrada do novo dia quando, por fim, degustámos o nosso manjar. Na época, estava longe de imaginar que, hoje, a nobre tarefa de cozinhar para a família seria uma porta de acesso ao autodidatismo.
Trabalhar com o conhecimento tem as suas singularidades: só faz sentido se o partilharmos e, quando associado ao prazer, vicia — é o caso do universo das novas tecnologias — superalimento que combina perfeitamente com tudo (otimismo meu). Em 94, quando iniciei o meu périplo pelas escolas públicas portuguesas, era tradição a produção do jornal escolar pelos professores de línguas. A atividade era meritória, promotora de amizades e aprendizagens, mas, em abono da verdade, o processo, visto com os olhos de hoje, era a pré-história do que se faz nas escolas. Sem computadores (nem um Intel 486), os textos eram escritos à máquina; depois, recortados; a seguir, colados numa folha A3 ou numa cartolina, e, por fim, o resultado da colagem era policopiado e distribuído. Em 97, os primeiros Pentium da Intel começaram a marcar presença nas escolas e o meu interesse pelas TIC irrompeu… Definitivamente. E, quando se trata de abraçar um desejo, de ceder a uma sedução, então que seja impetuosamente, pelo mais difícil, não pelo óbvio. Na época, a Adobe tinha lançado comercialmente o programa PageMaker® para Windows, para concorrer com o QuarkXPress® (sistema Macintosh), muito usado nas redações e gráficas. O irmão de uma colega conseguiu uma cópia; era necessário aprender a trabalhar com o programa. Tirar um curso sobre PageMaker®, que os havia em Lisboa, era inexequível: Portugal é pequeno, mas a capital ficava longe, e o IRS jamais compensaria os gastos na formação. Assim, muitas horas foram perdidas a digitar texto, a tirar apontamentos de funções e procedimentos, a refazer trabalhos. Desta forma, em 99, com alunos do 8.º ano, na célebre Área Escola, fiz uma revista, e, em 2000, o jornal da minha escola passou ser paginado num programa profissional.
Hoje, adquirir novas competências está à distância de um clique — abençoada Internet e YouTube e tutoriais e formação online! O conhecimento advindo do autodidatismo, para mim, é tão válido quanto o ministrado formalmente, basta saber procurá-lo criteriosamente. Absorvê-lo demora o tempo de um assado ou de uma confeção que não requeira grande supervisão. Para hoje, tenho um compromisso que não quero de forma alguma falhar. Preciso de tempo para o cumprir; simultaneamente, após um dia de trabalho, tenho de fazer o jantar. Ah! Quero ver, pelo menos ouvir, um tutorial sobre algumas novas funções da última versão do Affinity Publisher® (alternativa extraordinária ao Adobe InDesign®), programa que, nos últimos tempos, tenho utilizado para compor a página do agrupamento para o jornal local. A TV que está na cozinha tem YouTube, por isso não impeço a família de ver outros programas. Lá fora está calor, não muito, assim um Bacalhau à Zé do Pipo vem mesmo a calhar: entre cada fase da receita, dou continuidade ao meu compromisso para hoje e, como o extrator não vai estar muito tempo acionado, posso ir ouvindo o tutorial. Mãos à obra!
O bacalhau acabou de ir para o forno. O arvoredo que vejo da janela da cozinha estremece ao sabor de uma suave aragem. Olho para o PC: falta anexar este texto ao email e enviá-lo.
(o autor escreve de acordo com o novo AO)