A Terra, no equador, gira a pouco mais de mil e seiscentos quilómetros por hora. Por esta razão, ultrapassá-la de forma sustentada não é um plano viável. Mesmo um avião supersónico terá de parar ocasionalmente para operações de manutenção — o reabastecimento em voo já é uma realidade há muito — e essa paragem fará com que o mundo o apanhe. Os fundos necessários a tamanha empresa não seriam um obstáculo, mas a mecânica sim. Tem tanto de fascinante como de desmotivante, isto de haver leis que a prata não muda, é a descoberta da realidade que os paladinos da aprendizagem ao longo da vida não se cansam de martelar.
No andar de cima, o pai, preso a uma cadeira de rodas, ouve os Johann Strausses, umas vezes o velho, outras vezes o novo, enquanto as senhoras do apoio domiciliário lhe tratam da higiene e alimentação. O volume da música tem vindo a aumentar com a surdez, ao ponto de os vizinhos se queixaram de que nem com as janelas fechadas conseguem viver a qualidade prometida pelos defuntos promotores da zona. O que vale é que, ainda assim, preserva as características essenciais de verdura e ausência de transportes públicos que motivaram todo aquele sucesso imobiliário. Se fosse o Richard Strauss, talvez não se queixassem tanto, mas os tempos em que o pai enchia a casa com os sons e as cores da verdadeira arte pertencem a um passado do qual os quadros espalhados pela casa são o único testemunho.
A mãe reformou-se antecipadamente da fundação com o pretexto de cuidar do marido, mas nunca está em casa. Passa os dias nas obras de caridade, agora mais em tarefas de organização do que no terreno. Umas semanas antes, estacionou o jipe em cima de um sem-abrigo e esse pequeno incidente motivou incompreensões que ela não tem disposição para aceitar. Com tanto espaço vago na cidade, quem mandou o mendigo montar o estaminé, um amontoado de sacos de plástico e cobertores infestados de percevejos, no passeio junto ao supermercado onde ela ia, com as amigas, recolher bem alimentares destinados a obras sociais da igreja? Revoltada por as autoridades não darem o caso por encerrado com a promessa de que pagaria as despesas médicas do pobre coitado, passou para a área da logística, que também apresenta a vantagem de conferir ao exercício uma maior sensação de controlo.
A irmã mais velha já saiu de casa há uns anos, quando se casou. Não se sabe muito do seu dia-a-dia, faz questão de não aparecer senão quando as tradições o exigem. Não consegue estar quieta nem calada durante um segundo, mas como tanto o marido como o filho, ambos forçados à alexitimia, não tugem, a média dá um agregado quase ameno. Fala principalmente dos cremes, das loções, séruns e emulsões, dos elixires, óleos essenciais, pomadas, fragrâncias que revende para os melhores estabelecimentos da especialidade. Lá em casa, toda a gente sabe que a empresa está falida, serve apenas para ela ter uma ocupação mantida pela torneira aberta de onde escorre o dinheiro da família. Do lado de fora, toda a gente a julga uma empresária de sucesso e por vezes até aparece em revistas, que ela leva para mostrar na véspera de Natal como prova do seu papel na sociedade.
A irmã mais nova tem o curso de marketing e publicidade pendurado porque os professores, embora a achem esperta, lhe exigem bibliografia e não só o produto da sua intensa atividade cerebral. Mas ela, desde que, após uma exaustiva investigação genealógica, descobriu que os males da família vêm pelo menos desde finais do século dezoito, dedica-se quase em exclusivo a desvendar as razões espirituais do tormento familiar. O afã de namorados iluminados e senhoras envoltas em nuvens de cheiros do oriente, que vão somando explicações para aquela malaise multissecular enquanto desfalcam o frigorífico e a despensa, dão à casa uma vida que se perdera com apodrecimento das crianças. Por isso e por a caçula sempre ter tido o privilégio do ângulo morto, as buscas da polícia, que só encontrou uma dose de haxixe para autoconsumo, tiveram como única consequência uma redução simbólica da mesada.
Não tão exuberante mas mais exequível que o avião supersónico é mudar os óculos de posição com um gesto brusco da cabeça. O feito em si não é nada de especial: segundo a Your World in Data, cerca de vinte e sete por cento da população mundial é capaz de, com graus diversos de proficiência, passar os óculos da arcada supraciliar para a cana do nariz — e vice-versa — por meios estritamente cranianos. Mas o contexto é tudo e filmar-se a fazê-lo no metro apinhado perante o pasmo dos trabalhadores ou enquanto está sentado na sanita de uma discoteca com um cigarro na boca, por exemplo, é o ingrediente de uma receita de sucesso. O próximo passo será percorrer o mundo, patrocinado pelas melhores marcas de eyewear, fazendo as cangalhas de autor saltar para cima e para baixo com as landmarks do turismo internacional como pano de fundo. Lá por não haver desígnio nem ânsia, sonha, nada o impede de ter objetivos de valor acrescentado e, acima de tudo, um futuro.