Voltei a ver J pela primeira vez desde que voltei do campo de refugiados de Nea Kavala. Já não o via há dezoito meses, quando nos despedimos naquela noite no norte da Grécia em que o álcool anestesiava o tumulto de uma partida indesejada. O vírus chegava com ordens de abandono e as capitanias do mundo anunciavam o recolher obrigatório. Naquela altura ainda desconhecia a amplitude do tempo que viria a estender a sombra sobre o chão que piso. Depois das tábuas de queijo e de carne, com o vinho sempre a chegar da cozinha, com as cestas de pão a encher o espaço entre os pratos atafulhados, cruzavam-se os olhares desesperados pela proximidade da partida no meio do amparo das graças e de outros humores mais apimentados. Tentávamos, em grupo, fazer daquele jantar algo menor que uma derrota, e daquela despedida algo mais raso do que uma escuridão. O convívio prosseguiu no bar da porta ao lado, na tentativa de adiar o momento em que cada um de nós desapareceria na estrada, essa mal iluminada, que se abre no halo dos faróis e se fecha no côncavo da noite. Com a soltura da língua e a urgência das horas, lá se foram consumando as despedidas, um a um, confiando que o que sobra ao sentimento não resulta num exagero, mas antes num excedente não perecível que trazemos para casa. Sabíamos, todos, que não nos estávamos apenas a despedir uns dos outros, mas também a despedir-nos de uma certa trégua para com o mundo.
Largo de porte e de espírito, J entrava em todo o lado sempre com a passada larga de quem quer roubar tempo ao espaço, e foi assim que o encontrei à frente da estação de metro. Always late, my friend! Sem me dar tempo para mais, prosseguimos até ao primeiro balcão que nos vendesse uma cerveja. Em dez minutos, fez-me o apanhado da sua vida. Desde aquela noite, em que nos despedimos com um abraço que me beijou, tudo melhorou: foi promovido no trabalho, vai juntar-se com a namorada e permanece inquieto com a vida. A conversa evolui para as incertezas, as injustiças, as injúrias. Diz que está cansado mas sabe que eu não o acredito. Acha que devíamos formar um grupo armado. Rimo-nos. Eu digo-lhe que devia escrever. Ele hesita, concordando no fim como quem cede a uma obrigação maior. Maybe. Chega uma tábua de queijo e de carne enquanto desabafo o meu desânimo pela apatia da nossa geração. Acomodo o pão na mesa. Está toda a gente muito ocupada na sua vida. Uns a trabalhar, outros à procura de trabalho… Li há muitos anos, numa revista de avião, uma citação de Camus que dizia qualquer coisa parecida com: cabe aos ociosos mudar o mundo, já que os outros não têm tempo para isso. Chega o vinho numa taça de gelo. A mesa é já uma ilha. Em mil novecentos e quarenta e seis, Camus dava uma palestra em Columbia, EUA, intitulada de A Crise Humana (1), onde falaria em nome de todos os franceses de trinta anos: uma geração que teria de enfrentar a guerra porque teimara em pensar que o mundo existia e lutava sem valores reais. Os nossos trinta, meu querido J, somos nós a alhearmo-nos de uma luta de cada vez. O restaurante vai fechar. Vamos ter com os amigos que estão em casa a beber e a jogar. Apresenta-me descomedidamente, mas sou apenas um dos rapazes na casa dos trinta com uma visão pessimista do mundo e outra optimista do homem. Há rum na mesa do pátio. Somos mandados calar por uma vizinha quando já só sussurrávamos. Voltamos a Nea Kavala. Pergunto pelo F, pelo S, pela A, pelo M. Estão todos bem menos o S. Continua lá, pelo quarto ano consecutivo. Quero voltar, mas não sei quando consigo. Trabalho? Não só. Também há a questão da sombra que trouxe comigo… Cai um balde de água do céu.
São as tais da manhã de uma segunda-feira e acabou a sangria. Tenho de ir. Repete-se o beijo do abraço, o aperto dos olhos. Fecha-se a porta nas costas, abrindo-me a cidade nos pés. Embrenho-me na meada escura-amarela misturando as luzes desfocadas da rua na alvura de uma recordação forte. Duvido do percurso que tomo mas não das imagens que se fundem na aguarela eléctrica do retorno a casa. Um candidato a presidente eleva a mandíbula em frente a um talho. Uma cruz de tipo grego cintila de verde a cara de um vendedor de casas. Um corpo feminino e nu devora a montra de uma agência de viagens pintada de fresco. Há gente por todo o lado nestas ruas desertas e superiluminadas. As esquinas vão-se dobrando em novas desconfianças e em novas saudades. São precisos novos rostos, como aqueles que andei a espalhar nas cidades, com outros de trinta cravados. Sigo uma voz de mulher. Circulo no lancil. Acordo com uma mensagem de J dizendo que partiu nessa manhã. Recordo apenas a tábua de queijo e de carne, com o pão nas cestas e o vinho a bordejar. Não. Ainda não estamos fora do absurdo.
1. “Existe uma crise humana?”. Elas me permitem responder como todos os homens dos quais falei responderam: “Sim, existe uma crise humana, pois a morte ou a tortura de alguém em nosso mundo de hoje pode ser examinada com um sentimento de indiferença, interesse amigável, experimentação científica, ou simples passividade.” Albert Camus, 1946.