É em Fevereiro que, no quadrante noroeste de Portugal, se celebra uma das menos badaladas festas do calendário popular. À inexistência de anúncios públicos, cartazes, convites à população, notas de imprensa e reportagens televisivas, junta-se a incerteza (poderíamos mesmo chamar-lhe secretismo) quanto aos locais onde decorrem os festejos. Assim, e apesar de se tratar de um evento aberto a todos, sem controlo de entrada e com horário de funcionamento alargado, são poucos os que incluem na sua agenda uma visita à Festa dos Martelinhos.
“Martelinhos” é como são popularmente chamados os Narcissus cyclamineus. Há muitas espécies de narcisos espontâneas em Portugal, mostrando-se quase todas elas entre Fevereiro e Abril; a maioria dá flores de um amarelo vivo, mas também as há em tonalidades mais pálidas. Solitárias ou em cachos, as flores dos narcisos são formadas por uma coroa mais ou menos cilíndrica rodeada por seis “pétalas” (o nome correcto é “tépalas”); por vezes lembram estrelas em desenhos infantis, outras vezes assemelham-se a objectos do quotidiano como um púcaro ou um funil. As do Narcissus cyclamineus singularizam-se pela coroa comprida e estreita, perfeitamente cilíndrica, e pelas tépalas completamente reviradas para trás; parecem mesmo cabeças de martelo inclinadas para o chão e prontas a desferir golpes. Mas são martelos de criança ou de casa de bonecas, pois cada flor não ultrapassa os 3 ou 4 cm de comprimento. Se os virmos ao longe, nas margens dos rios que costumam frequentar, notamos uma profusão de riscos amarelos, verticais como pontos de exclamação, a destacar-se do fundo verde. É nessa contemplação que está a essência da Festa, sendo a colheita das flores um acto de profanação totalmente proibido.
O N. cyclamineus é tão extraordinário que, vivêssemos nós numa época em que a fotografia não tivesse sido inventada e dele apenas conhecêssemos gravuras, talvez duvidássemos da sua existência. Poderíamos suspeitar, como escreveu Abílio Fernandes em 1953 no Anuário da Sociedade Broteriana, que tais desenhos fossem o “produto da fantasia” de algum“ilustrador antigo que desenhasse as plantas tal como desejava que fossem e não como eram na realidade”. Porque houve mesmo, na primeira metade do século XIX, quem afirmasse peremptoriamente a irrealidade dessa planta: “another absurdity which will never be found to exist”; “I have no hesitation in rejecting it as a non-entity” – escreveu o reverendo William Herbert na pág. 306 do livro Amaryllidaceae. Explica Abílio Fernandes que Herbert se referia a gravuras com mais de dois séculos, aparecidas em obras de autores franceses, representando uma planta de origem desconhecida supostamente cultivada nos jardins da realeza, que não voltou a ser encontrada até à data (1837) em que Herbet publicou o seu tratado. Ainda assim, essa não-entidade havia merecido, vinte anos antes, que o grande botânico suiço Augustin Pyramus de Candolle – que obviamente nunca a viu, mas fez fé no testemunho dos seus antecessores – se ocupasse dela, dando-lhe o nome científico que é hoje aceite.
Em 1881, dois membros da comunidade britânica do Porto, Edwin Johnston e William Tait, resgataram o Narcissus cyclamineus do limbo da inexistência ao descobri-lo em abundância nas margens do rio Ferreira e de outros afluentes do Douro. Anunciada a novidade ao mundo civilizado (ou seja, aos horticultores e entusiastas de jardinagem da Grã-Bretanha e de outros países europeus), logo se seguiu uma caça aos bolbos que, em poucos anos, fez com que a espécie quase desaparecesse da região do Porto. Eis pois uma planta com uma história singular: teve publicado o seu retrato (e um retrato bastante fiel) mais de 200 anos antes de ter nome, e só 60 anos depois de ter nome é que foi descoberta – ou seja, só então se comprovou que a planta existia e se ficou a saber de que lugar obscuro do planeta era originária. Sem a divulgação no estrangeiro e nos meios especializados, a planta nunca se poderia considerar descoberta, pois os camponeses pobres que antes a conheciam, e que a venderam às carradas quando ela inesperadamente se valorizou, não têm nome nem história, nem saberes que possam constar em compêndios.
O Narcissus cyclamineus não desapareceu do nosso país, como se chegou a recear, com a colheita desenfreada do final do séc. XIX. Desde a serra do Caramulo a Paredes de Coura, passando pela serras da Freita e do Arestal, por Santa Maria da Feira e por Valongo, há ainda muitos lugares onde, discretamente, se celebra a Festa dos Martelinhos. Somos poucos os celebrantes, e não sabemos se há ainda quem, com olhos inocentes e ancestrais, os veja como os martelinhos que sempre foram, ignorando o nome arrevesado que alguns doutores insistem em dar-lhes.