É indescritível, e mesmo assim há que tentar descrever a sensação de ver o reflexo das águas escuras sem fundo nas pedras que se abrem como uma vulva gigantesca. O Cabril, escavado pelo rio, fica assim aberto a meio. Um espetáculo natural que só pode ser apreciado de forma imersiva, o que implica mergulhar na água. Claro que está fria. O segredo está na habituação gradual do corpo, que só pode ser feita de maneira solitária e confiante. Uma pessoa além de mim é uma pessoa a mais. Não gosto de ser vista. Vou lá para ver sem que me devolvam a imagem. Aquelas pedras nada dizem sobre mim, calam-me. É no silêncio gelado que me encontro a olhar para o céu. Basta-me mergulhar os ouvidos e fico sem som. Com a pele congelada não sinto nada. Resta-me a visão para estar no mundo. Ver. As nuvens brancas no céu azul. Ver. A contemplação resulta de poder concentrar-me só num sentido, com os outros adormecidos. A sentir menos penso menos, e deliro-me. Vejo uma efémera molhada a afogar-se. Lá vou eu pô-la na rocha quente, mas ao sacudi-la cai outra vez. Tenho mais que fazer que salvar efémeras. Tenho delícias para aproveitar, rebolo-me. Divirto-me a fazer ginástica, a manter-me à tona, e passa por mim um melro-de-água, e um belo guarda-rios. Fico feliz por ter deixado o vestido na margem. Preocupo-me ligeiramente com a forma como irei buscá-lo, porque está do avesso. Posso demorar um bocado e serei menos discreta a vestir-me, ainda mais com duas crianças no açude. Mas eis que o pai delas me salva. Despe os calções dele e das crianças. Que alívio. Rio-me, e nado mais um pouco. Ufa, hoje o Cabril é nosso. Posso ser um animal aquático algum tempo mais. Cruzo-me novamente com a efémera e tento redimir-me do resgate fracassado. Pousa no meu dedo, exausta, e confia em mim e na pedra que escolhi para ela, ao sol e sem aranhas. Vejo e sou vista, mas quem me vê também está nu, o que nos coloca em corpo de igualdade. Sorrimos, cúmplices, sem trocar palavra. Saio da água sem pressas. Debato-me com o vestido e ganho. Eles mergulhados na água, com os dentes de fora, a atirar pedras. Brincadeiras sem retorno nem consequências. Espelhos de água quebrados por anéis que perdem lentamente a forma. Que maravilha o silêncio dos humanos. Que maravilha ser uma partícula em suspensão. Que prazer poder ver sem sentir por uns instantes, flutuar, aliviada do peso. Que bom sentir-me a flor no olho.
Desenho de Adoa Coelho, grafite, 60x125cm