Até ao Osso

26 de Agosto de 2023

A hortelã amadora

LEONOR GUSMÃO

A hortelã amadora, ou como discorrer sobre jardins em geral, e sobre horticultura em particular, sem nunca citar o Cândide.


Rezava o pacotinho de sementes “Cherry Belle” (Raphanus Sativa L) que os rabanetes em questão eram de folhas pequenas e coloração vermelho cereja, ligeiramente picantes e excelentes para serem consumidos crus, ralados ou em fatias finas. Também dizia tratar-se de uma variedade ideal para sementeira directa no solo, de crescimento muito rápido e alta produtividade e “particularmente boa para o hortelão amador” (elle-même!).

Informação corroborada pela literatura que a horticultora dispunha sobre o tema (terceira prateleira a contar da esquerda e quinta a contar do chão).

Incentivada pela recordação do anterior ano agrícola, farto em tomate-cereja (uma infestante!), physalis (outra infestante!), rabanetes, alfaces, courgettes e pepinos, que cresceram em caótica harmonia num espaço algo confinado, a horticultora empreendeu a sementeira.

Ciente de que, como constava do dito pacotinho, a validade do seu conteúdo expirara já há um ano — o precedente de tão boa memória, ressalvadas as beringelas e as couves-de-bruxelas que se revelaram incomestíveis — intuiu a horticultora que o decurso desse prazo teria apenas por consequência uma fraqueza germinativa daquelas sementes. Intuição a que também seriam dados os bons e estouvados amigos Bouvard e Pécuchet, se a Flaubert tivesse ocorrido confrontá-los com similar situação…

E foi com essa convicção intuitiva que a horticultora lançou à terra, um quadrado de 60 cm por 60 cm, uma mão-cheia do que restava das sementes de rabanetes sem guardar entre elas a distância regulamentar que figurava numa imagem pretensamente explicativa, mas confusa.

Porém, todas as sementes germinaram e cresceram…. de forma desastrosa. Filamentos raquíticos, de um tom rosa Guston enjoativo e que nunca arredondaram, com excepção de três exemplares de formato semelhante ao testículo de um canídeo de médio porte, coloração gangrenosa, travo terroso e textura fibrosa, que tiveram como destino a caixa de compostagem.

Falhou.

Também Pécuchet falhara nos bróculos, nos nabos, nas beringelas, nos agriões e nas alcachofras. Mas, àquele, “as couves consolaram-no. Uma houve, sobretudo, que lhe deu esperanças. Desenvolvia-se, crescia, acabou prodigiosa mas absolutamente incomestível. Pouco lhe importava! Pécuchet ficou contente de possuir um monstro.” (Bouvard e Pécuchet, Gustave Flaubert, edições Cotovia).

À hortelã amadora não envaideceu o falhanço corporizado naqueles três rabanetes grotescos. Encarou-o antes como um percalço necessário na sua aprendizagem da arte de bem interagir com a natureza — com exclusão da humanidade pois era dada a ímpetos misantrópicos desde criança.

A continuar assim, pensou ela, não tardaria a deixar a sertralina, já que a necessidade de jardinar se lhe sobrepunha tornando-a dispensável.

Embalada em tais cogitações, e porque também era culta, lembrou-se a horticultora do jardim de Giverny que Monet, inspirado nas estampas japonesas que coleccionava, idealizou só para o recriar em futuras representações pictóricas. Um jardim feito de curvas, assimetrias e sinuosidades, pejado de uma profusão de bambus, ginkgos bilobas, salgueiros, agapantos e glicínias. Vegetação que dispôs em torno de um lago, que ali plantou e encheu de nenúfares e plantas aquáticas, atravessado por uma ponte japonesa pintada de verde em vez do tradicional vermelho.

O seu “plus beau chef-d’oeuvre” (dizia) que até à sua morte retratou com paixão, explorando exaustivamente a profusão de formas e cromatismos daquela selva espelhada nas águas, abandonando a perspectiva e priorizando a dicotomia luz/cor, numa explosão de modernidade percursora do expressionismo abstracto americano.

Outro jardim, dito o “des Tarots” por ser composto esculturas representativas dos vinte e dois arcanos maiores do “Tarot” como o Mágico, o Eremita, a Papisa, o Diabo, a Temperança, a Morte, plantou-o Niki de Saint Phalle no coração da Toscânia, num diálogo inesperado entre escultura e natureza. Estruturas em betão, de dimensões monumentais e formas exuberantes e surreais, todas habitáveis, revestidas de mosaicos de cores vibrantes e psicadélicas — numa assumida inspiração “gaudíana” que se lhe incrustou na juventude — sobressaindo entre cedros, oliveiras e outra vegetação autóctone.

Durante alguns anos Niki de Saint Phalle fez da “Imperatriz” a sua casa. Uma escultura imensa em forma de esfinge, de cabeleireira farta azul-cobalto e coroa vermelho-sangue, e, como todas as suas “Nanas”, provida de mamas fartas ornamentadas com motivos de cores vivas e luminosas, uma com um malmequer e outra com um coração. E era no interior dessas imperiais mamas que vivia, de uma fazendo o quarto e da outra a cozinha.

E os jardins de Georgia O’Keeffe nas terras áridas do Novo México, o da casa do Ghost Ranch e o da casa de Ubiquiú. Daquela primeira avistava o Cerro Pedernal, a sua montanha privada, como lhe chamava, e que pintou vinte e quatro vezes para melhor dela se apropriar…

E assim termino, abruptamente, por ter atingido e ultrapassado (pouco!) o número de caracteres exigido.


Georgia O’Keeffe, My Front Yard, Summer, 1941