Número 29

25 de Fevereiro de 2023

DOIS PARES E MEIO DE ASAS

A identidade é um nome cosido a fio azul

MARTHA MENDES

“Conheces o nome que te deram, não conheces o nome que tens.”

Livro das Evidências [epígrafe do livro Todos os Nomes, de José Saramago]


Victoria Donda. É possível que este nome não lhe diga nada — e é natural: há tantos nomes no mundo que este é só mais um. Um, entre os milhões que nunca conheceremos, que nunca saberemos traduzir num rosto, num corpo, num toque, num tique de expressão. O que é um nome, se não lhe associarmos um conceito? O que é um significado sem o seu significante? Um não tem valor sem o outro, porque eles ligam-se numa relação de significação. Se o significante é a forma, o significado é o conteúdo. Se um é o corpo, o outro a alma. Se um é o som da palavra, as letras que a constituem, o outro é a materialização que esse som, essas letras, assume na nossa cabeça quando o ouvimos, quando as lemos. E se, como nos ensinou Saussure, isto é válido para o signo linguístico, é também válido para quase tudo, porque as palavras são o barro de moldar o mundo. No princípio era o Verbo, depois construiu-se o mundo — pedra sobre pedra, palavra seguida de palavra, significado atrás de significante: às coisas associámos palavras. Aos rostos associámos nomes próprios; aos nomes associámos histórias, obras. É por isso que Sophia (escrito assim, com “ph”) e Eugénio são nomes de poesia. Salomé é o nome da vingança e dos ardis femininos. Bárbara, um nome que invoca raios, trovões e tempestades, “mais forte que as torres das fortalezas e a violência dos furacões”. Por isso, esperamos que, a fintar finais infelizes, haja um Pedro para cada Inês, um Romeu para cada Julieta. É por isso que “Sebastião” encerra os regressos, por fim, redentores — um nome, palavra aguda a condizer com um salvador com pendor para a demora, cuja tónica se faz esperar até à última sílaba. Que significado pode ter o mundo se ignorarmos a relação entre os seus elementos? Victoria Donda. Não sabe quem ela é? Ela também não sabia. E teve de esperar 27 anos para descobrir que a Victoria era ela.

“Eu tinha 27 anos quando, graças a uma denúncia anónima apresentada por uma mulher que se lembrava de ter visto um militar entregar a um casal de “pais” um bebé com fio azul nas orelhas, as Avós da Praça de Maio (Abuelas de la Plaza de Mayo) puderam finalmente encontrar-me e revelar-me a minha verdadeira identidade. De acordo com os testemunhos de alguns sobreviventes, eu nasci entre Agosto e Setembro de 1977. Numa tentativa desesperada para que me identificassem, a minha mãe coseu-me os lóbulos das orelhas com um fio cirúrgico azul, que lhe fora disponibilizado para o caso de surgirem complicações durante o parto. Quinze dias após o meu nascimento, tiraram-me dos braços da minha mãe. Esta não voltaria a ver-me e, pouco depois, seria vítima de uma dessas célebres “transferências”, uma operação que consistia em administrar aos prisioneiros uma injeção de pentonal, um poderoso anestésico, antes de os lançarem vivos ao mar [a partir] de um avião militar”. É assim que a autora do livro “O meu nome é Victoria” resume a história da tragédia pessoal — mundial, contemporânea — que é sua e de outras 500 crianças, que se estima que tenham sido roubadas, durante a ditadura argentina, para serem criadas pelos carrascos dos pais.

A importância do nome — o nome enquanto selo primeiro da identidade construída — está, desde logo, no título mas, se dúvidas houvesse, bastaria ler a introdução, cuja primeira palavra é o nome que a família de adopção — e rapto — lhe deu: Analía. Este primeiro texto é um roteiro da sua procura de identidade e o itinerário é definido, literalmente, da primeira à última frase: a introdução, que começa com a frase “toda a gente me chamou sempre Analía e é este o nome que figura no meu bilhete de identidade e na minha certidão de nascimento”, termina com uma afirmação feita catarse e chegada ao destino. “(…) Esta obra é sobretudo o meu modo de clamar bem alto um facto que quiseram esconder-me durante anos: o meu nome é Victoria Donda”.

O nome enquanto peça central no puzzle do que somos, o nome-manifesto, estava no ADN dos Donda e, também, na história da irmã mais velha de Victoria, a quem os pais haviam dado “o nome de Eva, em homenagem a Evita Perón e ao mundo socialista e igualitário com o qual sonhavam”. Quando o tio, irmão do pai — militar que prestara bons e leais serviços na Marinha e responsável pela denúncia, e consequente prisão e assassínio, do próprio irmão e da cunhada grávida — decide, como estocada final, retirar a neta mais velha da guarda da avó materna, passando a ser o tutor legal da menina, a sua primeira medida foi suprimir-lhe dos documentos de identidade o primeiro nome próprio, deixando apenas o segundo: Daniela. Também o nome Victoria era simbólico: presa grávida, Cori, a Mãe, manteve-se inabalável, agarrando-se à esperança que trazia no ventre, confiante de que ali estava o futuro, a mudança iminente, o triunfo da luz sobre as sombras: a Victoria, slogan da esquerda mundial, por quem Che pediu que lutássemos sempre. Mas a bebé, que chegou para anunciar a esperança, foi roubada à Mãe e criada por quem a arrancou às raízes. “Assim nascia Analía, lançando Victoria no esquecimento”, resume — entrelaçando memória (ou o esquecimento, na sua outra face) e identidade — a advogada e activista, 78ª neta encontrada pela associação das Avós da Praça de Maio e a primeira a ocupar um cargo político, de deputada, no seu país. Em dezembro do ano passado, as Avós da Praça de Maio encontram a 131ª pessoa roubada aos pais, entre 1976 e 1983, o período negro da ditadura argentina. Estima-se que cerca de três centenas de pessoas, hoje todas adultas, continuem, quatro décadas depois, a viver com identidades falsas, desconhecendo a sua história — e o seu verdadeiro nome.

As Avós da Praça de Maio sabem a importância de se chamar Victoria. A importância de se chamar Eva. E tudo o que há num nome. A importância de escrever Sophia com “ph”. De um “H” a mais, de um “H” a menos. Eu. Os meus — os que me deram nome, os que fizeram de mim o que sou. Eu e o outro. Às vezes, até o eu descoberto no outro: call me by your name. Se a rosa tivesse outro nome, teria o mesmo perfume? What’s in a name? Um nome não é um detalhe. Ou talvez seja, mas a identidade é feita de muitos detalhes. Às vezes, a identidade é um nome cosido a fio azul, por uma mãe desesperada, numa orelha de bebé. Quase sempre, é o fio de Ariadne que nos permite sair do labirinto do que somos.