Entre os Ossos

18 de Setembro de 2021

A minha quarta encarnação

António Olaio

In my first incarnation, I was Caesar
In my second incarnation, I was Jesus
In my third incarnation, I was Marie Antoinette
In my fourth incarnation, I was…
I don’t remember what I was in my fourth incarnation


Estes são os primeiros versos do vídeo/canção “A little bird in a tree” 1, título que traduz a condição em que se encontrará este indivíduo na presente encarnação. Mas, antes de ser pássaro numa árvore, terá sido outras coisas de que se lembra e outras não…

É esta quarta encarnação indefinida que abre as possibilidades para uma nova série de 69 desenhos.

Um espaço de pura plasticidade em que estes desenhos vão encontrando forma e lugar, formas em passagem entre as coisas de que nos lembramos, as coisas que acreditamos descobrir, as coisas que poderão ter existido, as coisas que já foram, as coisas em devir e as coisas que não são coisa alguma.

De que corpo tratarão estes desenhos?… Desde logo, no processo de os fazer, estranho a palavra corpo mais do que lhe procuro encontrar outros sentidos.

Por outro lado, mais importante desta “quarta encarnação” é o não me lembrar dela, e, por isso, através dela, ensaiar a pura possibilidade.

No caminho para lembrar o impossível, interessa o espaço vago que se abre com a plasticidade de uma matéria informe tomar formas ou, sobretudo, a passagem de umas formas a outras. E, nessas passagens de um princípio e devir indeterminados, perante a matéria em bruto, talvez encontremos o caminho para uma existência para além do circunstancial e das exigências redutoras da utilidade.

Na própria performance, na presença de um corpo que se autorrepresenta, simultaneamente assistimos à purga de um corpo. Um corpo que se volatiliza ao ser simultaneamente imagem, objecto e sua representação.

Ao partir da possibilidade de autorrepresentação, mesmo que na alteridade de uma “outra encarnação”, através destes desenhos, pensarei também o artista como performer, ou no espaço das motivações da performance.

“Será a performance a fogueira da pintura?

Poderei eu mostrar para fora, mostrar aos outros a fogueira que possa arder cá dentro? (…)

Talvez seja mais fácil pintar o lado de fora e o lado de dentro desta sala do que pintar o meu interior ao mesmo tempo que o exterior.”

Armando Azevedo, 1987 2


O que quereria dizer Armando Azevedo com “pintar o (seu) interior ao mesmo tempo que o exterior”?

Mas mais do que o sentido destas suas palavras, enquanto acto artístico, é importante o efeito da ressonância deste enunciado: pintar o interior e o exterior em simultaneidade… a anulação da diferença entre interior e exterior… o invisível interior de um corpo e o seu espaço negativo, todo o resto… o espaço negativo de um corpo que nos mostra o corpo centrífugo, moldado por tudo o que não é, tudo o que começa nos seus limites e se expande indefinidamente… tudo o que é para além dele, em todas as direções e sentidos…

Talvez esteja aqui o sentido de “a explosão solitária de um indivíduo entregue a si mesmo” de Duchamp…

“Sob a aparência, estou tentado dizer sobre o disfarce, de um dos membros da raça humana, o indivíduo é de fato sozinho e único e no qual as características comuns a todos os indivíduos, tomados no conjunto, não possuem nenhuma relação com a explosão solitária de um indivíduo entregue a si mesmo” 3.

Ainda mais do que aparência, abre-se a possibilidade deste corpo não ser mais do que um disfarce… mas quem, ou, melhor, o quê se disfarça?

Nesta série de desenhos, equacionando uma quarta encarnação inacessível, neste artifício, é esta passagem de umas formas às outras que aqui se vai fixando em cada desenho. Desenhos que vão buscando, em vão, a agilidade necessária de captar a plasticidade veloz do trânsito destas formas, ensaiando a possibilidade da existência da sua projeção no mundo visível…

Eu não me lembro do que fui na minha quarta encarnação. Mas, assim, parto do princípio de que esta existiu… A número 4, tentando pensar a sequência de encarnações numa descontinuidade que me pede uma racionalidade possível… Nem chegando a tentar uma racionalidade mais fina que me permitisse pensar, por exemplo, a encarnação 4,5…

1 Canção com Vítor Torpedo, editada no cd “Anywhere else”, Lux Records

2 A partir de manuscritos nos cadernos do artista plástico/performer Armando Azevedo

3 DUCHAMP DU SIGNE textos reunidos e apresentados por Michel Sanouillet Paris: Flammarrion, 1991, pp. 236-239

















(esta série de desenhos foi apresentada na exposição “My fourth incarnation”, Zaratan, Lisboa, inaugurada dia 9 de Setembro, até 30 de Outubro de 2021)