Número 18

22 de Janeiro de 2022

BOLSA DE VALORES

A monte

HÉLIO BARATA

A nossa lua, Selene, é uma boa lua. Grande, brilhante, dinâmica, com o jeito certo para as marés. A única decente em torno de um planeta telúrico e uma das responsáveis pela vida que existe na Terra. Demasiada importância, pensaram uns engenheiros, para a deixarmos estar, para nos deixarmos estar. Há ali um potencial inexplorado. E se lhe aumentássemos o albedo de forma a que permitisse a leitura à noite? A energia que se poupava, os recursos que exploraríamos, a enxurrada de avanços que tamanha empresa traria. Para quem já conseguiu descobrir o segredo dos automóveis mais autónomos que os seus donos, esta será, seguramente, uma obra de engenharia exequível, à distância de financiamentos e comparticipações. E oposições. Virão os médicos, os naturalistas e os patetas dos poetas dizer que deixa de se poder fitar sem cegar, que alterará os ciclos da natureza, que o rególito merece o seu descanso, deitando por Terra o sonho com os seus argumentos indesculpavelmente válidos.

Aqui estou, na varanda, perante uma paisagem humanizada que me é totalmente estranha. O ar, a duração do dia nesta altura do ano, a tessitura do vozeado coletivo em dia de feira, mesmo ao cimo da minha nova rua. Dos montes despidos de árvores saem pequenas colunas de fumo que sobem a direito pela atmosfera, tal como o fumo do meu cigarro. Não há vestígio de vento, o ar está seco e a caducidade da frescura matinal prenuncia uma tarde tórrida. À chegada, ontem à noite, ouvi alguém dizer, tanto quanto percebo aquela língua de trapos, que a Lua estava amarela, outro prenúncio sem custos para o utilizador. A Lua será, de hoje em diante, o meu único contacto instantâneo com o que resta de nós, a única parte sólida da natureza que partilharemos. De entre todas as coisas incertas, ou melhor, de entre todas as coisas, uma é certa: nalgum momento olharemos a Lua ao mesmo tempo, como dizem os apaixonados, ora imaginando-lhe um rosto, ora contemplando o vazio da sua existência. Veremos se será suficiente.

As chamas confirmam que o controlo é uma ilusão. A serra arde na noite, a cifra do burburinho ocupa as ruas e as janelas, as sirenes e o fumo cancelam o sono. Como vim parar aqui? Que forças são estas — tão concretas que doem no corpo mas tão resistentes ao toque do pensamento — que me fazem atravessar territórios que, julgo, nunca escolhi? Poderia eu ter tomado alguma iniciativa que influenciasse este desfecho, que me tivesse tornado possível a permanência ou determinado outra geografia? As possibilidades correm-me na cabeça como as labaredas que engolem as giestas, imunes às tentativas de contenção. As ideias mais radicais, se pensadas e praticadas na altura certa, poderiam, com efeito, ter desenhado um outro rumo, que por sua vez viria a exigir estas mesmas questões. Nada distingue a ação da inação a não ser a moral, esse elemento tão volúvel e tão contextual. O som surdo e distante de um bidão de resina a explodir causa um sobressalto partilhado, um evento sem consequências mensuráveis no futuro imediato.

Fazendo a média das manchas mais escuras e das regiões mais claras, o albedo da lua é de 0,12, ou seja, o nosso único satélite natural reflete cerca de 12 por cento da luz que recebe do Sol. Um desperdício que as futuras gerações terão dificuldade em perdoar. Fazendo a média do apogeu e do perigeu, esses 12 por cento de luz solar refletida na Lua demoram, em média, 1,3 segundos a chegar aos nossos olhos, aos painéis fotovoltaicos, às páginas do dicionário.
 

O exótico tem opções. Logo à partida, está onde está porque escolheu ali estar. Não foi obrigado, não lhe aconteceu. Independentemente das circunstâncias e das voltas da vida, está sempre sujeito à presunção de consciência. No mínimo. No máximo, anda em pezinhos de lã pelos caminhos do dolo. É essa alteração de estatuto, ou mesmo estado, que costuma escapar ao novato. Teve de vir o fogo aos montes e o estouro à seiva para que se iluminasse em toda a sua amplitude a parte da distância que não era geográfica. A partir do momento da chegada, passara a ser dotado da capacidade de escolher: a) ser um amável que esconde o olho clínico atrás de uma pala ou b) o combustível na pira da comunidade; a) a capacidade de penetrar nos mais variados segmentos da população ou b) a fuga precoce para um anonimato sem ar condicionado; a) ficar, e como, b) ou sair, e quando. Nenhuma destas ou outras escolhas dependem de fatores exógenos, das condicionantes ambientais ou das ordens superiores da administração, uma prerrogativa que ao exótico está vedada por lei. Estás por tua conta, dizem por entre sorrisos os beneméritos, a menos que o tempo te cure, que do espaço já nada podes esperar.