O quadro aqui apresentado está numa das salas do Museu Inca, em Cusco, no Perú. O Museu Inca ocupa uma casa colonial, dita do Almirante, alcunha do tenente Maldonado, um espanhol que no século XVII a construiu, com as pedras do palácio do Inca. O último restauro foi ordenado pela Universidad Nacional de San Antonio Abad del Cusco, atual proprietária. O quadro, de raiz popular, data do século XIX e representa a tortura e sacrifício de José Gabriel Condorcanqui, no dia 18 de maio de 1781. Vou contar a história tal qual a ouvi, a Luiz, um estudante da UNSAAC, que encontrei no claustro e a quem paguei 15 soles para me guiar durante a visita.
O local é a Praça de Armas de Cusco. Quando Francisco Pizarro entrou em Cusco, capital do Império Inca, ao lado de Manco, escreveu a Carlos V: “ Esta cidade é a maior e mais bela já vista neste país e nas Índias. Asseguro a Sua Majestade que é tão bela e com edifícios tão distintos que seria notável, mesmo em Espanha”. A praça chamava-se Huacaypata, em Quechua, a língua do Império Inca. Em torno da praça estavam os palácios. Segundo a tradição, cada Inca construiu um palácio, no decurso do seu mandato. À chegada os espanhóis ocuparam os palácios. Pizarro ficou com a Casana de Huayna-Capac, o pai de Huascar, Atahualpa e Manco. Huascar morrera quando viajava ao encontro de Pizarro, pouco tempo antes. Atahualpa tinha sido assassinado por Pizarro, após um cativeiro às suas mãos e de ter pago o resgate mais vultoso da História em troca da liberdade que não lhe foi outorgada. Manco iria ser um colaborador da ocupação colonial, primeiro, até se revoltar.
A Casana tinha um salão de entrada onde cabiam 60 homens a cavalo. Em frente, no outro topo da Praça, estava o palácio Amaru Cancha, que coube por sorte a Hernando de Soto, um dos conquistadores. Quando de Soto deixou Cusco, 2 anos depois, Hernando Pizarro, um dos irmãos do comandante, tomou posse da edificação, derrubou a belíssima torre e vendeu-o aos Jesuítas, que sobre os destroços edificaram a sua igreja. Ao lado do Amaru Concha estava a Acllahuasi, a casa das Mulheres Santas, ocupada por três oficiais e depois vendida aos Dominicanos, que a demoliram para substituir pelo Convento de Santa Catalina. Frei Vicente de Valverde foi instalado no palácio do Inca Roca, o sexto Inca. Um palácio foi destinado à construção da Catedral. São esses alguns dos edifícios que em 1781, e ainda agora, delimitam a Praça de Armas. Passaram-se então 250 anos. A América do Sul estava dividida em duas colónias. Nesta reinavam os reis de Espanha. Já não se falava quechua. O ouro e a prata dos Incas foram fundidos e transformados em moeda ou lingotes. Inti, o sol, Mama Quilla, a lua, Viracocha, o deus criador, Pachamama, a mãe Terra, eram deuses pagãos, esquecidos, julgava-se. Os Incas obedeciam ao Requerimento. Colaboram e reconhecem o deus da Bíblia de Frei Valverde e a autoridade do Imperador de Madrid, ou são abatidos. Quando o saque dos metais acabou, começou a vertigem da exploração mineira. Os índios foram mobilizados para as minas de Potosí, num regime de semi escravatura, a mita, que eles próprios, ironicamente tinham criado para a construção ciclópica dos seus templos e palácios. Ao longo dos Andes, nos vales férteis, de Quito até ao Chile, passando pela Bolívia, falava-se uma só língua: o castelhano.
O homem que vai morrer e se vê em primeiro plano, no quadro da sala do Museu Inca, é então José Gabriel Condorcanqui, mas há três anos que se faz tratar por Tupac Amaru. O pai era espanhol e a mãe índia, de alta linhagem. Casou aos 16 anos com Micaela Bastidas Puyucahua, uma aristocrata mestiça da província. Fora educado pelos jesuítas. Falava com fluência espanhol e latim. E quechua. Ouviu os velhos, que tinham transportado as narrativas do Império Inca, das culturas pré-colombianas, do mundo andino até à invasão. Percebeu que era um descendente de Tupac Amaru, o último Inca de Vilcabamba, morto em 1572.Herdara do pai o título de cacique, autoridade local, através da qual os colonizadores reconheciam alguns privilégios a locais que com eles colaboravam. Administrou vários territórios. Ao longo do tempo, como sucedera com Manco Inca no tempo de Pizarro e dos primeiros conquistadores, cresceu nele a revolta da humilhação colonial. Primeiro escreveu às autoridades, pedindo a revisão da mita e de outras leis coloniais. Depois escreveu ao Bispo. Ninguém lhe respondeu. Um dia, ele prendeu e executou o corregedor Espanhol e iniciou o que foi a primeira luta anticolonial das Américas depois da submissão, com vitórias militares retumbantes como a de Sangara. Demorou a entrar em Cusco. Foi traído pela cultura do colonizado. Pediu a benção do bispo de Cusco, Juan Manuel Moscoso e Peralta, um sucessor de Frei Valverde, para poder descer sobre a capital. O bispo não respondeu, uma vez mais. Mas excomungou-o. A ele, a Micaela, à família. Dois séculos antes, quando Francisco Pizarro anunciou a Atahualpa que os espanhóis o iam queimar, o Inca ficou inconsolável. Atahualpa acreditava que a alma precisava do corpo para sobreviver e a ideia de que o seu corpo desapareceria nas chamas era insuportável. Agora, Tupac Amaru, o rapaz dos Jesuítas, irá perder a razão ao saber-se excomungado. Hoje, a excomunhão, não nos diz nada, multidões de excomungados, ateus, agnósticos, animistas, sincretistas, hereges, pagãos, crentes da energia que há em todas as coisas. Mas para os rapazes dos Andes educados pelos padres, a ideia de que se encontravam excluídos para sempre da comunidade de crentes e do Paraíso, condenados sem remissão aos castigos infernais, não era retórica bafienta, mas uma ameaça real. O revoltado Tupac Amaru II, como os seus antepassados Incas, foi derrotado pela ingenuidade, por acreditar na crença do ocupante, no seu fair play, no cavalheirismo. Por não ter percebido que os códigos de honra dos colonialistas não se aplicam aos índios, aos negros, aos mestiços, aos revoltosos. Não há perdão para os que se excluem da Ordem colonial. Não há vida fora do Império.
Tupac Amaru II verá morrer, horrivelmente torturada, Micaela Bastidas, que a pintura retrata ajoelhada aos pés de um algoz. Fora a sua conselheira e cúmplice, uma mulher em armas, determinada e combativa. Recrutara apoiantes valiosos. Lutara em Sangara. E verá a morte do filho mais velho. E dos seus capitães, um a um. E como os cavalos não o desmembraram, Tupac Amaru II foi entregue ao ferro dos carrascos e os seus membros e cabeça decepados e enviados para as cidades da província, para que os povos que não puderam assistir aos castigos da Praça de Armas de Cusco pudessem ver o castigo reservado aos que resistem.
Ao fundo, no adro da Sé catedral de Cusco, estão sentadas as Autoridades. O Governador e o Padre. Entre eles está uma cruz. É a cruz de Pizarro, o aventureiro que submeteu Atahualpa em Cajamarca, em 1532. A cruz que o padre Valverde empunhava, quando gritou aos 150 espanhóis que o Inca fitava, do palanque :
“ — Ataquem! Ataquem o Infiel, que é Lucifer”!
A cruz que viu as espadas dos cavaleiros espanhóis a decepar as mãos dos altos dignitários que seguravam a liteira do Inca, até que Pizarro, com as próprias mãos o apeou e levou cativo para uma habitação da Praça de Armas de Cajamarca. A cruz que assistiu à matança dos sul americanos desarmados e atónitos. Duas horas de carga mortal sem resistência. Até que, com 2.500 índios mortos e o Inca prisioneiro, os espanhóis se cansaram e pararam o extermínio que anunciava um tempo novo para um Império que desconheciam, e que era mais extenso e habitado que a Espanha.
Esta foi a cruz com que Francisco Pizarro entrou em Cusco. A cruz que ouviu ler o Requerimento, onde Carlos V, o grande Imperador católico exigia duas obrigações aos povos submetidos: “aceitar o governo do Rei pela vontade do Papa e aceitar a fé cristã”. Ou “ os espanhóis fariam todo o mal e dano que podiam, incluindo a escravidão das mulheres e crianças e o roubo das posses”.
Esta cruz esteve no Convento de Santa Catalina. As monjas emprestaram-na para a cerimónia de esquartejamento dos índios revoltosos. E, diz a história, que aterradas pela violência desse dia, não a quiseram de volta.
Está agora, esquálida, contrastando com o brilho barroco das talhas, no altar mor da Sé Catedral de Cusco.
The Conquest of The Incas, John Hemming, Mariner Books, 2003