I’m a stranger here
I’m a stowaway from the olden days
And I’ll play you a song from the place I come from
If you like
Também eu venho de um Passado anterior à Modernidade. De um tempo de trevas e de promessas, da Cidade das Flores, que já existia serenamente em Itália e inevitavelmente transformaria as cidades tristes que habitávamos, onde os rios que passavam pelas nossas aldeias eram todos mais belos do que o Tejo e os campanários recitavam para o Portugal Futuro.
Da pobreza descalça e respeitadora, das fábulas de La Fontaine, das grandes matanças coloniais, do mar sulcado por negreiros intrépidos, transportando para a Modernidade, gente acorrentada, sem disso se aperceberem.
De um passado que se vai aprofundando, até ser a história da humanidade.
Um crânio esmagado, encontrado num sítio arqueológico de Marrocos, numa época onde os todos os sapiens do mundo se contavam por centenas, se por acaso se soubessem contar, em santuários africanos que disputam o troféu de berço da humanidade.
A humanidade teve o seu berço em Marrocos, afinal. Mesmo junto do Hotel La Mamounia. Ou na África do Sul, há quem afirme. Ou na África Oriental como se pensava, há anos.
Li isto no Smithsonian Magazine, num artigo que mostra esse crânio de um sapiens de há 300.000 anos, ao lado do pop up de umas sandálias Simona da INCH2 que custam, em saldo, apenas 300 dólares.
O berço da humanidade é disputado. E o seu leito de morte também.
Eu já vi a humanidade morrer nos campos de batalha da Primeira Guerra Mundial.
Na guerra civil de Espanha.
No Gulag.
Nos campos de concentração e de extermínio.
Nas cidades de Hiroshima e de Nagasaki.
Nos massacres de Sabra e Shatila.
No Mediterrâneo e nos mares do sul da China.
Na África dos grandes lagos.
Na ex-Jugoslávia.
O campeonato do leito de morte da humanidade é disputadíssimo e o leitor juntará locais e fará apostas segundo a sua proveniência, fontes de informação e preferências ideológicas. E desgraçadamente, terá sempre alguma razão. Acertará sempre, tornando impossível esta lotaria.
Mas o sítio de onde eu venho é de um passado outro.
Uma raposa na savana. Uma osga imóvel junto a um ponto de luz. Uma ave noturna de voo silencioso.
Ou uma célula viva, eucariótica, um organelo, o material genético.
Ou um potencial de ação, uma fenda sináptica, uma molécula neurotransmissora.
Ou uma imensidão vegetal a sul, ou um deserto inóspito para lá do qual está o mar, ou torres de gelo, ou um vulcão vomitando as vísceras do planeta.
Até ser a imensidão cega interestelar, o Oriente desta vida, onde deus talvez exista realmente, significando nada, importando para nada.
Por isso sou um estranho aqui.
Se me cegarem ouvirei os sons do mundo estranho. Se ensurdecer terei os outros sentidos. Sou um estranho aqui, porque é assim que me sinto, depois da Modernidade. Tenho demasiada história comigo. O que faço agora é tentar reconhecer-vos, meus semelhantes ou diferentes. Ver crescer as vossas crias com espanto.
E olhar para vocês com indulgência.
Olhar para vocês sem acrimonia.
E olhar para vocês com eudemonia.
Olhar para vocês de Estrimonia.
Olhar para vocês sem simonia.
Mercitude.
E olhar para vocês com mercitude.