Ando à procura de uma imagem. Ando à procura de uma imagem que condense o labor de um percurso em que os desvios já se interceptam numa recorrente coincidência das formas. As figuras do mundo já não se resumem a entidades dispersas: uma sombra ali, uma ruína acolá. As divergências já não se diluem em meras questões de gosto. Melhor: o gosto tornou-se na verdade mais importante de ser discutida. A imaginação, como nó entre a sede e o gole, tantas vezes ansiosa, ingénua, obcessiva, injusta, aproveita-se da desarrumação do quarto para mastigar os livros e os cuspir num mosto de fermentação lenta, lembrando que os textos também actuam como composto químico. Intromete-se na pista, entre os dançarinos, para se livrar dos rostos que os sorrisos apagam e os olhos omitem, provando a influência dos fantasmas que negamos. O desejo ganha contornos de loucura ao querer ver tudo numa vitrine desenhada para uma colecção de sopros. O sopro e o desejo revezam-se em entusiasmos e apneias, misturando vísceras e âmbares, em sonos antigos e outros apocalipses. Então o que era até então uma pilha de lixo que se acumulava toxicamente, enchendo a caixa torácica, começa a aproximar-se mais de uma taxinomia de figuras relevantes, imagens que aspiram a tornar-se imagens.
Tudo é ainda uma neblina, mas uma neblina composta por muitas certezas: a distância ao referente (que será a de uma hesitante aproximação ao todo fotografável, garantindo sempre a amplitude necessária para que nela possamos estender, inteira, a mortalha do seu corpo), a saturação (que a cor não supere a sugestão da sombra que cobrirá sempre os céus), o grão (a pele), a velocidade (que permita a perda do tempo), o ritmo (a narrativa perdida), o intervalo (ensurdecedor), o tema (a praça), a praça (a prosa), a pedra (a madeira, a erva, a carne), a magia (em sais), o flash (na noite aberta pelo fechar dos olhos), a sede (sempre), a proporção (não interessa se disposta horizontal ou verticalmente se a gravidade for a de um grande mamífero), o ângulo (sempre aquele que deixa de fora o temperamento), a temperatura (fiel ao que se traz vestido), o dispositivo (que está à disposição), tédio (não haverá imagem sem castigo), a caça (a imagem é um animal selvagem), cansaço (aumenta com a perseguição), desilusão (mais que provável).
Ando à procura de uma imagem. Uma obcessão alimentada por uma infância infinita, que abre os atlas e as ruas para que o dia não se torne adulto, essa definição de pleno desenvolvimento — a evocação do auge. Nos atlas tudo é incompleto e tudo é inteiro. O falhanço é o ponto de partida para o seu atravessamento e o exame do mais detalhado dos mapas é a ligação mais honesta para a maravilha do nada. No entanto, é aí que crescem as imagens, na meninice dos dedos a percorrerem o deserto, nos movimentos da cabeça aproximando e afastando as fronteiras para as colocar nos continentes e depois no mundo, enquanto os dentes mordem os lábios, enquanto se monta e desmonta o universo e se espera que tudo se vá um dia projectar numa forma tão íntima e tão predisposta para a propagação. Sabemos que os nossos anseios interiores seriam violentamente incompreendidos no Mais-Belo-Jardim-das-Flores, mas não resistimos a esticá-los em cordas bambas, mesmo na tarde mais triste.
E mais certezas se anunciam: a lente (que não distorça mais do que o necessário), o filtro (apenas como protecção da lente), a profundidade de campo (a filosofia ou a vertigem), a sensibilidade (de um gato em campo aberto), a banda sonora (de baixa frequência), a edição (transformar até que tudo se torne real), a moldura (que se possa fechar), a exposição (no local do crime), a companhia (com quem perceba a opção do quatro por cinco), a motivação (política e melancólica), a política (mais polis e menos polícia), público-alvo (ninguém), alvo (todos).
Quando me convencem de que não vale a pena procurar por essa imagem, de que tudo não passa de uma saudade melódica de algo que existiu tanto quanto a ilustração das areias movediças nas páginas do atlas que herdei, que serve apenas para dissimular o fracasso da revolução num museu de decalques, resta-me apenas tentar mostrar que há um certo perigo em ceder ao deslumbramento dos artistas que armadilharam as suas ofertas e que aceitar isso é nada mais nada menos que condenar à morte a minha frágil, exuberante e incessante infância.
P.S.: A data (amanhã, sempre amanhã).