Número 38

2 de Março de 2024

O DESPLANTE

A prosa do mundo

FREDERICO MARTINHO

o amor disforme informa a noite:

o silêncio é um trauma

como uma floresta queimada

nele habitam os vivos e os mortos e afloram

tenros rebentos, pontas de fósforos ardidos

por um lume eléctrico

sem fogo

esse fogo

a brandir nas paredes brancas

demasiado brancas

inflama por dentro

como a cal fervente

troveja antes de alvorecer

mas não alvorece

este inverno informe

demasiado grande para nós

perdidos na liquidez de um mapa

desfeitos num trilho de neve morna

frustrando o que costumava brilhar

nas alturas dos céus que arranhávamos

e dessas cicatrizes

que abriam a madrugada ao meio

como um fruto

maduro

e agora

que os cães uivam ao longe

já nos queixamos de os ouvir

adormecendo de costas

como duas nascentes

que soltas da linha de festo

se preparam para irrigar

planícies opostas

dois horizontes lisos

dois cânticos

duas migrações

abandonamos os versos porque não sabemos o que fazer com o salto do regresso. É tudo demasiado aberto; é tudo demasiado exigente, o silêncio à frente de cada imagem. Mesmo fechando os olhos à noite, é o sonho que impede o descanso. A noite foi contaminada, e nós, que sempre lhe esperámos o quarto aceso, soltando o sexo no relento da cama, na superfície onde se nasce e renasce sob o céu branco de um tecto, um berço manchado do sangue da infância, o medo de acordarmos atrasados para os filhos que enxertámos no rosto um do outro, nós, despenhados na desarrumação dos dias, pisamos os estilhaços de vidro no chão. O vidro que, inteiro, sobrepunha os corpos em pinceladas de chamas, duplicados nas câmaras de ar, e que, partido em mil pedrinhas preciosas, projecta a luz em todas a direcções, lançando o caos na casa que arde a média luz. Não há objecto que não se desmonte perante o desvelo ― nem o vidro, nem a paisagem, nem mesmo um poema abrigado numa mancha de texto onde as palavras aguardam como lenha pronta para arder. Depois de dissecarmos o aparelho que montámos no sofá, aquele feito dos nossos ossos sobrepostos, de selarmos a fonte do sopro que transpirámos, o que fazer com os desenhos de criança, com as promessas de uma casa e de uma árvore, e o sol que remata o canto da folha. Dá-se o início e o fim da prosa, a percepção de que acordar é pertencer a uma teia de entendimento, que cada objecto novo é somente mais uma curva na filigrana que adornará o mito da finitude: a falsa sensação de que algum dia nos compreenderemos. É isso a cidade, a política, o romance, o bosque. Cenários para criaturas contínuas, que bebem do céu e mastigam a terra. Criaturas que somam à fome a sabedoria, e digerem o mundo numa linguagem infinita em busca de uma lógica, de um conceito, de um destino, onde possam repousar e vencer o medo do regresso ao aberto, ao momento onde tudo é possível porque nada existe. Deixemos os livros nas estantes, estarão lá sempre que precisarmos de saber os nomes das cidades sagradas e dos animais raros. Deixemos um pouco de lado a realidade e o trabalho que ela exige ― inventaram o Cinema para que pudéssemos sair de mão dada do sofrimento dos outros. Voltemos às ideias radicais, àquelas onde seremos pobres como a chuva fria entranhando o solo, porque é na raiz que se esconde a primavera, renovada continuação do tempo ― símbolo e labirinto, templo e erosão. Se a prosa quer dizer em frente, contra o sempiterno inverno que desce

assim termino

montando em verso

o instante extinto

da última noite:

aquela em que regressas

com todas as tuas sombras.