o amor disforme informa a noite:
o silêncio é um trauma
como uma floresta queimada
nele habitam os vivos e os mortos e afloram
tenros rebentos, pontas de fósforos ardidos
por um lume eléctrico
sem fogo
esse fogo
a brandir nas paredes brancas
demasiado brancas
inflama por dentro
como a cal fervente
troveja antes de alvorecer
mas não alvorece
este inverno informe
demasiado grande para nós
perdidos na liquidez de um mapa
desfeitos num trilho de neve morna
frustrando o que costumava brilhar
nas alturas dos céus que arranhávamos
e dessas cicatrizes
que abriam a madrugada ao meio
como um fruto
maduro
e agora
que os cães uivam ao longe
já nos queixamos de os ouvir
adormecendo de costas
como duas nascentes
que soltas da linha de festo
se preparam para irrigar
planícies opostas
dois horizontes lisos
dois cânticos
duas migrações
abandonamos os versos porque não sabemos o que fazer com o salto do regresso. É tudo demasiado aberto; é tudo demasiado exigente, o silêncio à frente de cada imagem. Mesmo fechando os olhos à noite, é o sonho que impede o descanso. A noite foi contaminada, e nós, que sempre lhe esperámos o quarto aceso, soltando o sexo no relento da cama, na superfície onde se nasce e renasce sob o céu branco de um tecto, um berço manchado do sangue da infância, o medo de acordarmos atrasados para os filhos que enxertámos no rosto um do outro, nós, despenhados na desarrumação dos dias, pisamos os estilhaços de vidro no chão. O vidro que, inteiro, sobrepunha os corpos em pinceladas de chamas, duplicados nas câmaras de ar, e que, partido em mil pedrinhas preciosas, projecta a luz em todas a direcções, lançando o caos na casa que arde a média luz. Não há objecto que não se desmonte perante o desvelo ― nem o vidro, nem a paisagem, nem mesmo um poema abrigado numa mancha de texto onde as palavras aguardam como lenha pronta para arder. Depois de dissecarmos o aparelho que montámos no sofá, aquele feito dos nossos ossos sobrepostos, de selarmos a fonte do sopro que transpirámos, o que fazer com os desenhos de criança, com as promessas de uma casa e de uma árvore, e o sol que remata o canto da folha. Dá-se o início e o fim da prosa, a percepção de que acordar é pertencer a uma teia de entendimento, que cada objecto novo é somente mais uma curva na filigrana que adornará o mito da finitude: a falsa sensação de que algum dia nos compreenderemos. É isso a cidade, a política, o romance, o bosque. Cenários para criaturas contínuas, que bebem do céu e mastigam a terra. Criaturas que somam à fome a sabedoria, e digerem o mundo numa linguagem infinita em busca de uma lógica, de um conceito, de um destino, onde possam repousar e vencer o medo do regresso ao aberto, ao momento onde tudo é possível porque nada existe. Deixemos os livros nas estantes, estarão lá sempre que precisarmos de saber os nomes das cidades sagradas e dos animais raros. Deixemos um pouco de lado a realidade e o trabalho que ela exige ― inventaram o Cinema para que pudéssemos sair de mão dada do sofrimento dos outros. Voltemos às ideias radicais, àquelas onde seremos pobres como a chuva fria entranhando o solo, porque é na raiz que se esconde a primavera, renovada continuação do tempo ― símbolo e labirinto, templo e erosão. Se a prosa quer dizer em frente, contra o sempiterno inverno que desce
assim termino
montando em verso
o instante extinto
da última noite:
aquela em que regressas
com todas as tuas sombras.