Número 37

27 de Janeiro de 2024

OBRIGAÇÕES DO TESOURO

Alegria sem fim

HÉLIO BARATA

A amizade de Facada e Ranheta era antiga e inabalável. Vinha desde os tempos do básico e tinha resistido a tudo: aos arrufos, às mudanças de morada, à pobreza, às dores de dentes. Nem mesmo quando Ranheta se casou com uma instrutora de condução de quem Facada não gostava, aquela relação, que se diria acima da irmandade, fora abalada. Não que Facada tivesse gostado de alguma das namoradas de Ranheta, mas aquela, que para mais tivera honras de casamento, repugnava-o particularmente. A voz, a cara, a mesquinhez, a ostensiva cretinice, tudo nela o agastava. Mas conseguia disfarçar o seu desprezo pela criatura porque, na realidade, Ranheta lhe dedicava a ele mais do seu tempo do que à esposa e, talvez intuindo os maus fígados que havia entre ambos, tendia a não os misturar no mesmo espaço-tempo: a mulher ficava em casa, a tratar da lida e das crianças, que o pai reconhecia apenas por obrigação, enquanto os dois amigos iam beber uma cerveja ao café, fumar um charro à fábrica abandonada ou, simplesmente, ir com a boom box para o parque ouvir música tradicional da Polinésia.

Mas nem tudo ia bem. As piadas que outros amigos lançavam à união entre eles eram encaradas com bonomia por Ranheta, mas não tanto por Facada, que fingia a custo não se tocar com os dichotes. Confessava ser um homem torturado por um romance do passado, uma cozinheira gélida com quem se envolvera, anos antes, numa temporada de apanha da maçã no sul de França e que partira, de um dia para o outro, sem um adeus que fosse. Não tinha ficado sequer com uma fotografia dela, muito menos um contacto que lhe permitisse persegui-la e vingar aquele ato de desamor. Por vezes, quando estava embriagado, perdia-se em descrições pormenorizadas do corpo dela, uma deusa que os circunstantes não tinham tido a sorte de conhecer, dos seus beijos e mais além, chorando o trauma que o impedira de voltar a estar com uma mulher.

Foi, por isso, com uma alegria desusada que um dia apresentou a Ranheta a sua nova namorada, uma bailarina clássica muito mais jovem que eles. A efusão encobria o temor de que aquela alteração tão profunda no seu estado provocasse a desconfiança e mesmo o afastamento de Ranheta. Mas o que sucedeu foi o oposto: Ranheta e a nova namorada de Facada criaram quase instantaneamente um laço de cumplicidade: a frescura dela e a segurança dele conjugavam-se como cebola e tomate. Aquela química, não só não incomodava Facada, como o enchia de alegria. Os dois amigos passaram a frequentar-se amiúde com a nova presença feminina, que rapidamente aderiu aos seus gostos musicais e narcóticos, acompanhando-os para todo o lado, reforçando ainda mais o vínculo entre eles.

Um dia, a dançarina apareceu sorumbática ao namorado. Tinha algo a confessar. Escondia uma gravidez de cinco meses que não tivera coragem de lhe contar e compreenderia se ele não encontrasse forma de lho perdoar. Facada, atónito, ficou sem palavras, e ali ficaram os dois, frente a frente, em silêncio, até que no rosto dele começou a surgir um sorriso que se foi alargando até se juntar ao clarão que lhe começava a invadir os olhos. Para ele, nada havia a perdoar, o nascituro seria, aliás, o selo do seu amor, uma criação que se prolongaria para lá dos seus corpos apaixonados. A namorada não sabia o que dizer: nunca tinha havido entre eles, naqueles três anos de namoro, nada que se assemelhasse a sexo, e mesmo as manifestações de afeto mais típicas entre amantes ocorriam quase só em público. Como podia Facada ficar tão feliz, como podia não perceber? Tomada pelo embaraço e a vergonha, decidiu entrar na peça e representar o papel que, naquele momento, lhe tinha calhado de forma tão inesperada.

Ranheta afastou-se passados uns dias, alegando razões financeiras — os seus filhos com a instrutora de condução representavam uma despesa incomportável, um esbulho superior ao seu mísero ordenado nacional — que o obrigaram a emigrar para norte. Entretanto, a criança de Facada lá nasceu, no tempo certo, um rapaz saudável e prazenteiro que a todos encantava. Facada exigiu, contra a opinião da namorada, em dar-lhe o mesmo nome próprio de Ranheta, decisão que veio a revelar-se acertada, uma vez que as semelhanças da criança com o amigo do seu pai se tornaram evidentes desde cedo e foram crescendo com o passar do tempo. O sinal na omoplata direita, igualzinho, os olhos verdes e daltónicos, a delicadeza dos lábios, os lóbulos da orelha diminutos, o nariz recurvo, o pé grego, as feições que se iam desenhando. A mãe vivia um embaraço constante, uma mortificação que aplacava através do mergulho cada vez mais fundo na religião. Mas todas as semelhanças com Ranheta pareciam agradar a Facada, que via no filho a substituição do seu amigo emigrado, que só raramente aparecia ou respondia às tentativas de contacto. Para todo o lado ia Facada com o filho, que exibia com orgulho, desconhecendo os comentários que corriam pelo bairro acerca da matéria biológica. Mas é duvidoso que a mordacidade dos outros, caso lhe chegasse aos ouvidos, o afetasse. Aquela criança, que não desejara em corpo ou pensamento, e a que se dedicava com devoção, tornara-se, para Facada, mais que uma dádiva, a garantia de uma alegria sem fim.