Tuol Sleng era uma escola secundária em Phnom Penh, restos da presença colonial francesa na Indochina. Em 1975, os khmer vermelhos entraram na capital do Cambodja sem oposição. A tropa regular do Exército Real Cambodjano, muito mais bem armada, tinha fugido, desertado ou entregado as armas sem combater. Vejo fotografias da época. Os doentes de um hospital, crianças, alguns populares, saíram para a rua para aplaudir os libertadores. A embaixada francesa estava já atulhada de refugiados: franceses, outros estrangeiros, correspondentes de guerra. O exército vitorioso, o Exército Revolucionário do Kampuchea, era composto por camponeses jovens, muitos deles recrutados à força nas regiões que ao longo dos anos iam sendo conquistadas. O exército de Lon Nol, o general que derrubara o rei Norodom Siannouk e trouxera os americanos para o Cambodja, com milhares de toneladas de bombas e pouca visão estratégica, rendera-se ou debandara. 1 Os Khmer vermelhos, nome que o rei Siannouk dera aos comunistas, dominavam já extensas áreas rurais. Tinham uma organização secreta que a população pronunciava em surdina, Angkar, e um programa. Entre os seus dirigentes contava-se um grupo que estudara em boas escolas de Paris, nos anos 60, segundo a velha tradição colonial. Entre eles o secretário geral, Pol Pot. O programa do Partido previa a transformação do país numa sociedade de camponeses iguais. Os membros do Partido faziam, embora não o quisessem admitir, um trajeto de purificação semelhante ao dos rituais budistas. Desligavam-se das famílias, mudavam de nome, trabalhavam até à exaustão física, eram doutrinados numa ideologia que misturava a luta de classes com o ódio ao inimigo, o desprezo pelo indivíduo em nome de um coletivo mítico, a obediência cega aos dirigentes, a delação paranoide, a repressão sexual. Nos campos libertados, sob a orientação de um ancião nomeado, dedicavam-se a um ritual diário de autocrítica, onde os iniciados eram incitados à confissão de delitos menores e, numa segunda volta, o líder paternal pedia que retirassem do subconsciente culpado os pecados maiores. E era então premiada a denúncia dos colegas, irmãos de armas, familiares e amigos. O arqueólogo francês François Bizot, que foi prisioneiro do campo khmer M13, nas “zonas libertadas” testemunhou estas sessões e viu um rapaz acusar outro de esconder um caderno que escrevia às escondidas. Bizot publicou, trinta anos depois, um livro intitulado Le Portail, onde revela como conheceu e estabeleceu uma relação com Douch, o chefe do campo de detenção. 2 Douch, na altura um jovem, como Bizot, tinha sido professor de matemática. Preso e maltratado pela polícia de Siannouk juntara-se ao Partido Comunista depois de uma amnistia, na altura do golpe de Lon Nol. Em 1976 ele tornou-se o diretor do Centro de detenção e tortura instalado no liceu Tuol Sleng, batizado de S 21 e que se tornaria o símbolo da tragédia Cambodjana. S de Segurança, 2 de Segunda Repartição e 1 de Pol Pot, o Número Um do novo regime.
Agora, em novembro de 2023, o campo está intacto, aproximadamente como foi desde que começou a funcionar em 1976, até à chegada das tropas vietnamitas em 1979 que acabaram com o regime demencial dos Khmer vermelhos. O Centro Documental do Cambodja calcula que os seus edifícios de três andares albergaram 15 a 20 mil presos, todos torturados barbaramente em condições indescritíveis de detenção e posteriormente executados sem julgamento. Muito poucos escaparam. Aqueles que os vietnamitas libertaram, cerca de 120, desapareceram ou foram mortos nos dias subsequentes, mas estes dados são de difícil confirmação. Os presos eram inicialmente pessoal da administração, professores, médicos, intelectuais e depois, numa segunda leva, membros do regime, alguns deles de alta patente, como o Ministro das Finanças do governo revolucionário, Koy Thuon, chefe da Zona Norte durante a guerra civil, que um dia se vê sorrir numa fotografia entre os membros do Comité Central e no outro está agrilhoado numa cela. Os detidos entravam em S21 vendados e eram agrilhoados em celas individuais ou coletivas obrigados a permanecer com os excrementos. Eram interrogados sob torturas de inconcebível crueldade, em rondas que acabavam com o pedido de elaboração de uma história de vida e finalmente exigiam a denúncia de traidores que incluíam familiares e amigos. No final eram invariavelmente executados num campo a 15 km da capital, com a presença de Douch, por um bando de jovens carrascos adolescentes. Eram colocados de joelhos, manietados, instruídos para “não meterem o pescoço entre os ombros” e espancados com ferros e machetes, antes de serem degolados e atirados para valas comuns. As suas fotografias forram, hoje, as salas de S 21. Mas como estas fotos, obtidas à entrada da prisão, foram separadas dos processos, a maior parte deles não está identificada.
Exceto se houve sobreviventes da família, com estatuto e capacidade para o fazer, mais tarde.
Foi o caso de alguns estrangeiros, apanhados na voragem. E de Bophana.
Bophana. Hout Bophana, 25 anos, uma fotografia entre tantas, uma mulher do Cambodja. Vejo o filme de Rity Panh, uma curta metragem lenta, que se inicia em S21 com a visita do tio de Bophana, M. Toeuth, assim identificado, na altura em que faz o seu reconhecimento e se lamenta de não a ter recolhido na sua família, em 1975, quando ela sai da capital a caminho dos campos. 3 Como tantos outros. Vai sozinha. Separou-se da irmã e do filho, nascido da violação de um soldado de Lon Nol. E dirige-se para a terra onde passou a infância, a aldeia de Barai, agora um reduto de Angkar, organizado como cooperativa rural e dirigida por um ancião. Bophana faz tudo como deve ser. Muda de nome, passa a ser Mom, corta o cabelo, veste roupa preta e sandálias de pneu, esconde o seu passado. O pai era professor e dera-lhe uma boa educação. Fora morto numa escaramuça entre fações, em 1972. A aldeia tornara-se perigosa. Ela ficara com as irmãs a cargo e acabara a vender arroz no mercado de Phnom Pen. Parte do dia trabalha em Vi Anh Ar, uma instituição americana de ajuda aos refugiados, que recolhe também viúvas e prostitutas. Consegue emprego fixo no staff e depois ascende a um cargo de secretariado. Até que os americanos partiram. Ela é educada, fala inglês com sotaque ianque, é linda e tem a pele branca dos Cambojanos de alta linhagem. Uma mistura mortal, em 1975. Um dia encontra Hout Ly Sita, o primo que o pai adotou e com quem cresceu. Apaixonam-se. Separam-se.
Mom voltou à aldeia. O país é agora o Kampuchea Democrático. Em Barai, a aldeia, ela é vista com suspeição pelos camponeses. Está no ultimo degrau da nova hierarquia, não recebe comida, tem de forragear após a exaustão de um dia de trabalho intenso. Amigos vão em segredo levar-lhe arroz. Os aldeões acham que ela foi prostituta na capital. Um dia o primo vem à aldeia, visitar um familiar comum. Encontram-se de novo. Ele é agora um quadro do Partido, trabalha no Ministério das Finanças, com Koi Thuon, o ministro, dorme numa camarata e come na cantina. Já não é Hout Ly Sita, um monge budista, mas o camarada Deth, com pijama negro e revólver. A avó casa-os, ela sente que a sorte pode estar a mudar. Mas ele tem de partir. A partir daí escrevem-se. Cartas de um amor oriental, cheio de referências ao épico indu Ramayana. Ela assina agora as cartas como Sita, a deusa da coragem e do sacrifício, a mulher do príncipe Rama. Já não é a camponesa que tenta escurecer a pele na dureza dos campos de arroz. É a Sita de Deth, a Sita de Rama. As cartas são lindíssimas, de parte a parte. Ele cita Shakespeare. Ela adoece, é tratada com a drogas da medicina tradicional chinesa, porque os médicos e as enfermeiras desapareceram e quem agora exerce são raparigas de cursos rápidos ministrados por cooperantes chineses. Sonham em arranjar um quarto na capital onde se possam reunir. E cometem vários erros. A correspondência é proibida, mesmo entre familiares. A deslocação necessita de salvo condutos. Ela pede autorização ao chefe da aldeia para ir à capital. Este denuncia-a e pede uma investigação. Mom é presa.
Entretanto o camarada Seth perde o seu patrão e protetor. Koi Thuon, o Número 9, foi preso. Uma imagem, em S21, mostra-o agrilhoado. Protagoniza uma mais longas do S 21. Fará uma confissão de cem páginas, espiando as suas origens de intelectual pequeno-burguês até às responsabilidades nos maus resultados económicos da revolução, e será executado em 17 de Março de 1977. Os seus funcionários do Ministério estão agora em perigo. A polícia política revista a camarata onde se aloja um suspeito, e que é a mesma de Deth. Não encontra nada. A não ser um conjunto de cinco cartas de amor, três fotografias e um salvo conduto que permitiria a Deth ir buscar Bophana a Barai. As cartas de amor de Bophana. O camarada Seth é levado para S21.
Não encontraremos mais rasto de Deth, exceto a data atribuída por Douch à sua eliminação. Nem a sua fotografia, nas paredes das celas, é agora identificável. Deth não era o príncipe do Ayohdyah e não salvará Sita, por mais provas de fogo a que ela se submeta. E Bophana passará por tormentas inimagináveis. Por razões desconhecidas, Douch dedica-lhe uma atenção particular, muito maior do que a que merecem altos cargos do regime. Anota, nas margens dos autos, instruções sobre como deve decorrer o seu interrogatório. Sabemos, pelos restos deixados no campo à chegada dos vietnamitas, em 1979, e por relatos dos carrascos impunes, a extrema impiedade das torturas. Mas não imaginamos o requinte das que eram destinadas às mulheres. Ela confessou que era agente da CIA, responsável pela sabotagem da rede de distribuição de arroz no seu distrito e tendo como cúmplice Deth e vários familiares. Confessou que não amava Deth e que o seduzira. Douch escreveu na margem desta confissão: “puta”. No seu processo consta que foi eliminada em 17 de março de 1977, a mesma data de Deth, de Koi Thuon e de muitos outros presos. Mas nem a data da morte era certa em S21, pois Douch gostava de escolher dias especiais para os registos, que não correspondiam aos das execuções reais.
As confissões que se sucedem ao longo dos meses mostram a sua destruição como ser humano e a submissão ao delírio psicopata do torturador. Mas nunca deixou de assinar Sita de Deth.
1 Os americanos, com o presidente Nixon, iniciaram ações militares secretas no Cambodja, então neutral, em 1969. Até à sua retirada, em 1975, calcula-se que tenham executado, sobre o território do Cambodja, 47.500 raids aéreos onde despejaram mais de 2 milhõe de toneladas de bombas, mais do que o usado pelo conjunto dos Aliados na II Guerra Mundial.
2 François Bizot, Le Portail, Versilio. O livro de Bizot inspirou o personagem de Hansen a John Le Carré, no livro O Peregrino Secreto e dois filmes. Bizot deslocou-se ao Cambodja quando, 25 anos depois, Douch foi finalmente preso e julgado, tendo sido testemunha no processo.
3 Na realidade, o retrato de Bophana e o relato da sua vida aqui resumido a partir do filme Bophana, uma Tragédia Cambodjana, do realizador cambodjano Rity Panh, foi tornado possível quando, logo no início dos anos 80, a jornalista do Washington Post, Elizabeth Becker, ajudada pelos arquivistas locais, descobriu o processo em que, macabra surpresa, a evidencia incriminatória consistia num punhado de cartas de amor.
Para os interessados recomenda-se o livro de Elizabeth Becker, When The War Was Over: Cambodia And The Khmer Rouge Revolution . 1986, PublicAffairs. Edição do Kindle. E especialmente o capítulo 6, “The Romance of Comrade Deth – Destroying the Personal Life”. (pp 212-225)