Número 37

27 de Janeiro de 2024

EXCURSÕES

As ilhas remotas

PAULO VENTURA ARAÚJO

Descoberto em 1574 pelo navegador espanhol com o mesmo nome, o arquipélago chileno de Juan Fernández é composto por três ilhas principais, todas de origem vulcânica. Apenas as duas maiores, cada uma com cerca de 50 km2 de superfície, são hoje habitadas. A mais próxima do continente sul-americano, situada a 600 km da costa chilena, foi chamada Más a Tierra; a outra, que fica a uns 770 km do território continental, ficou a chamar-se Más Afuera. Para obviar ao uso de Más a Tierra como porto de abrigo e centro de operações de inimigos (sobretudo ingleses e holandeses), a coroa espanhola decidiu, em 1750, construir um forte e instalar uma colónia permanente numa ampla enseada na costa norte da ilha. A povoação então fundada, San Juan Bautista, é ainda hoje a única da ilha e é lá que que vivem os seus 850 habitantes. A ilha de Más Afuera, com um relevo problemático e sem enseadas que permitam o acostamento de navios, nunca suscitou a cobiça das potências europeias que nesses séculos disputavam o controlo dos mares. Permaneceu desabitada até 1909, ano em que o governo do Chile lá fundou uma colónia penal que viria a ser encerrada em 1930; no mesmo local, a meio da costa oriental da ilha, em pequenas casas de madeira, vivem hoje, sazonalmente, os 50 a 60 habitantes de Más Afuera – pescadores na sua maioria, mas também vigilantes da natureza.

Por culpa da literatura e do escocês Alexander Selkirk, habitante solitário de Más a Tierra entre 1705 e 1709, ninguém na actualidade conhece essas ilhas pelos pragmáticos (ou preguiçosos) nomes que os seus descobridores lhes deram. Selkirk, abandonado na ilha por recusar seguir viagem num navio que metia água, sobreviveu quatro anos caçando cabras assilvestradas, pescando lagostas, colhendo vegetais e frutos diversos. Dez anos depois do seu regresso à civilização, as aventuras de Selkirk inspiraram Daniel Defoe a criar Robinson Crusoe, o mais famoso náufrago ficcional de todos os tempos. A divergência entre a ficção e a realidade começa na condição de náufrago, que não se aplica a Selkirk. Além disso, a ilha de Robinson situava-se nas Caraíbas – ou seja, noutro oceano e seis mil quilómetros a norte do arquipélago de Juan Fernández. Não sendo Robinson Crusoe um retrato fiel de Alexander Selkirk e das suas aventuras, a relação estreita entre as duas personagens, uma inventada e outra real, está firmemente consolidada na cultura popular. Em 1966, procurando tirar proveito dessa fama para atrair turistas a um arquipélago remoto sem praias de bilhete postal, o governo do Chile mudou o nome às ilhas: Más a Tierra passou a ser a ilha de Robinson Crusoe, e Más Afuera (onde o marinheiro escocês nunca pôs os pés) a ilha de Alexander Selkirk. Por dificuldades de transporte, ou porque a fama literária não é a mais eficaz a atrair multidões, não consta que a explosão turística tenha alguma vez acontecido. Se o artifício tivesse resultado, talvez o governo português, sabendo do caso, tentasse rebaptizar Sintra como Byronland ou o país inteiro como West Coast of Europe.

No mundo globalizado que é o nosso, não é a distância que faz os lugares remotos. Pelo critério da distância, as Flores e o Corvo são as ilhas mais remotas do Atlântico Norte, e por pouco não o são de todo o Atlântico: os seus 1870 km de distância para o continente mais próximo batem Santa Helena (ainda que por curta margem) e só são ultrapassados (em 900 km) pela ilha de Tristão da Cunha. No entanto, posso comprar agora mesmo, usando o meu computador, uma passagem para o Corvo, chegar lá amanhã, ficar dois ou três dias, e regressar logo a seguir ao meu poiso costumeiro. Tudo tão fácil e rápido que a realidade da distância acaba por parecer irreal. Nada disso é possível com a ilha de Robinson Crusoe, muito menos com a de Alexander Selkirk, nem passaria a ser possível se eu vivesse no Chile. Ao contrário do que as distâncias fazem supor, o arquipélago de Juan Fernández é, mesmo para os sul-americanos, muito mais remoto do que os Açores.

Sabemos desde Darwin como as ilhas são fábricas prodigiosas de novas espécies, tanto  vegetais como animais. Milhões de anos de isolamento fizeram surgir formas únicas de vida. Nas ilhas mais remotas, poupadas durante milénios ao povoamento humano, esse processo pôde decorrer tranquilamente até há poucos séculos. O que o arquipélago de Juan Fernández mostra é que não é preciso um povoamento intenso para que a destruição de habitats e a extinção de espécies sejam rapidamente consumadas. Na ilha de Robinson Crusoe, o coberto arbóreo a baixa altitude praticamente desapareceu, com o sândalo endémico a extinguir-se por volta de 1910; para combater a erosão, plantaram-se pinheiros, ciprestes e eucaliptos. O lobo-marinho exclusivo do arquipélago foi caçado a ponto de se acreditar extinto em meados do século XX, mas recuperou a partir de uma pequena população refugiada na ilha de Alexander Selkirk, e hoje é espécie protegida.

Mesmo com estes estragos, as ilhas de Juan Fernández ainda são casa de plantas e aves únicas no mundo. Afinal, estas ilhas não têm trânsito motorizado, nem sequer estradas; é de acreditar que as mudanças na paisagem não tenham sido tão profundas. Acontece que plantas e animais introduzidos nas ilhas têm dinâmica própria, independente da vontade e da acção de quem os introduz. As cabras consomem avidamente a vegetação, tanto em sítios acessíveis como em lugares onde mais ninguém chega, abrindo espaço para espécies invasoras, mais resistentes à herbivoria. Mesmo numa ilha praticamente despovoada como a de Alexander Selkirk, o resultado do processo, nas zonas mais baixas, foi a substituição das plantas nativas por plantas banais que se tornaram cosmopolistas por acção humana: três das espécies dominantes (uma gramínea, uma erva-azeda e um dente-de-leão) encontram-se facilmente em Portugal; uma delas é infestante comum em relvados. Imagine o leitor que deu a volta a mundo e acaba de chegar, depois de muitas atribulações, a uma ilha que ninguém visita. Esperando ver o que nunca viu, aquilo em que primeiro pousa os olhos são as mesmas ervitas que aparecem no terreno baldio atrás da sua casa – da sua casa na enfadonha Europa que largou para se deslumbrar com o desconhecido.

Se tiver tempo, dinheiro e disposição (não é o meu caso), não desista o leitor de tentar conhecer ilhas remotas – lugares onde não haja muitos dos confortos civilizados a que se habituou, que o obriguem a estadias demoradas, e que sejam complicados de visitar. A um certo nível, não deve esperar que essas ilhas sejam assim tão exóticas, pois é mesmo verdade que o mundo habitado (que é o mundo todo) está cada vez mais igual. Contudo, se visitar a ilha de Robinson Crusoe, não deixe de procurar a palmeira endémica Juania australis: é alta e bonita mas avessa ao cultivo, e só nessa ilha a poderá alguma vez admirar no estado silvestre.