Propunha-me escrever um breve roteiro dos jardins da mui nobre e invicta cidade para uso de residentes e visitantes, mas fiquei atordoado com as pegas da Explonorte. Dividi-lo-ia em meses: em meados de Junho, data em que escrevo, iria assinalar os jardins, praças e ruas onde se alinham as tílias mais olorosas, aquelas que nos agarram pelo nariz e obrigam a mantê-lo empinado enquanto nos vão ministrando pelas fossas nasais um perfume quase narcótico. Só que os outros sentidos, furiosamente convocados pelas pegas, não conseguem manter-se em sossego e dar primazia ao olfacto. Entre duas pegas — a primeira de cada dia acontece às oito da manhã em ponto, a última às oito ou nove da noite —, a memória traumática persiste em criar réplicas de um realismo perturbador, inviabilizando o pensamento e o uso da inteligência. Não há tempo para me recompor entre dois abalos. À noite entram-me pela janela ruídos metálicos persistentes, denunciando o trabalho contínuo das gigantescas toupeiras mecânicas.
À perturbação mental acresce, por motivos diferentes, uma dor persistente no ombro direito. Nessas condições de debilidade, em vez do projectado roteiro dos jardins do Porto consegui apenas compilar uma lista de perguntas e respostas mais ou menos ligadas ao tema.
P. O que é uma pega?
R. Não é um pássaro corvídeo de plumagem branca e preta: a pega de que aqui tratamos rima com rega, não com chega (nem todas as palavras homógrafas são invenção recente, embora o AO90 tenha agravado o flagelo); é um substantivo derivado do verbo “pegar”, e entre os significados registados nos dicionários estão “acto de pegar”, “parte por onde se segura um objecto”, “luta ou rixa” e “acto de agarrar o touro à mão”. Nenhum dicionário (nem os mais volumosos, como o Houaiss e o da Academia das Ciências) explica que “pegas” é o que os profissionais desse ofício chamam às explosões controladas com que desbastam pedreiras ou abrem túneis. Os mesmos profissionais esclarecem que as rochas submetidas a pegas não são reduzidas a fragmentos, mas apenas desmontadas, como se as peças fossem numeradas e guardadas em armazém para serem novamente montadas logo que possível.
P. Quem é a Explonorte?
R. Informam os cartazes afixados nos tapumes das obras que a Explonorte é a “entidade executante” das pegas com que se vai perfurando o túnel da nova linha do Metro do Porto. Essa linha (chamada rosa) vai ser a segunda da rede de metro a ligar a estação de São Bento à Casa da Música, adaptando ao contexto da mobilidade urbana a inovação portuguesa das auto-estradas paralelas. Chega a ser tocante a ingenuidade com que o nome “Explonorte” boicota o eufemismo de “pega”. É como se um batalhão de operacionais alegadamente vocacionado para manter a paz e assegurar o regular funcionamento das instituições operasse sob o revelador nome de “Matatodos”. Vale de consolo aos espíritos regionalistas que não sejam a Explocentro ou a Explosul&ilhas a esventrar-nos a cidade: essas que vão rebentar para as suas terras!
P. O que têm as pegas (explosivas) a ver com jardins?
R. As duas crateras de onde saem os ruídos atroadores das pegas, e de onde emergem as ondas de choque que fazem chocalhar os prédios em volta, eram, até meados de 2021, dois jardins. No jardim do Carregal, mais antigo, houve muito corte de árvores, mas as de maior porte foram inicialmente poupadas e outras foram transplantadas — para irem acabar de morrer noutro lugar, como nestes casos é regra. Metade do jardim foi de pronto interditada ao público, rodeada por tapumes pintados com verdes e azuis saturados, entretando desbotados pelo sol e pelo pó, prometendo um futuro de árvores frondosas e mobilidade sustentável. Sorrateiramente, mais árvores foram desaparecendo enquanto encolhia, até se reduzir a nada, a parte do jardim acessível ao público. As copas das árvores do jardim, que antes se uniam continuamente, formam agora uma manta rala e esburacada. Perguntaram-me há dias se ainda lá existia a Cunninghamia lanceolata que em 2004, quando a fotografei jovem mas espigada, prometia durar séculos. Julgo que não, mas não posso confirmá-lo. Ainda assim, no final da obra poderão, no jardim do Carregal, sobrar o plátano, a araucária, alguns cedros-do-Líbano e uma dúzia de sequóias. Pior foi o destino do jardim de Sophia. Inaugurado em 1998, criado como contraponto verde aos blocos de habitação que nessa época ameaçavam sufocar o quarteirão entre a rua de Júlio Dinis e a praça da Galiza, entendeu-se que não tinha valor patrimonial ou ambiental que justificasse a sua preservação. A demolição integral do jardim — que incluiu o abate de uma alameda de freixos como não havia igual no Porto — trouxe grandes vantagens ao rápido progresso da obra, que tem podido decorrer a céu aberto e sem ocasionar perturbações de monta no trânsito automóvel da zona.
P. É sustentável destruir jardins? A cidade não precisa deles?
R. As respostas são tão óbvias que nem deveriam suscitar discussão, mas o que é digno de nota é o modo apático como esta cidade do Porto se conforma com a negação do óbvio. É aqui que entra em cena o Prestigiado Arquitecto da Escola do Porto (PAEP), verdadeiro serial killer de jardins que, no que toca a essa sua vocação, atravessa uma fase apoteótica da carreira. Não que o PAEP tenha, por si só, vontade ou meios para destruir jardins (ou rios, pois o cadáver do Tua também consta do seu currículo). Mas quem o queira fazer às claras, e até com um acréscimo de prestígio nos meios culturalmente relevantes, não tem mais que contratar os seus serviços. Consumada a destruição, cobre-se tudo com uma placa verde da autoria do PAEP, e mal se consegue conter o anseio pelo dia da inauguração. A cidade fica menos respirável e mais inóspita, mas em vez de um banal jardim acolhedor ganhamos mais uma obra de referência para ser elogiada em revistas internacionais de arquitectura.