Em Côja, passava as férias escolares situadas nas extremidades térmicas, embora ambas me lavrassem os lábios de herpes com a mesma virulência, contrariamente aos lobos que rondavam o lugar e se comportavam de distintas maneiras: no Inverno, ferozes, levando a cabo ataques que devastavam gado e outros animais domésticos; no Verão, esquivos e assustadiços, assemelhando-se a simples pastores alemães ligeiramente mais altos e magros.
Numa tarde, rondaria os meus sete, oito anos, sob a canícula castigadora do Verão, levando-me «a da carroça», rapariga enfermiça, mas desengonçada, a visitar uma tia-avó que me enfiava um chorudo envelope no bolso dos calções que operava o pequeno milagre de fazer surgir uma alegria breve no rosto da mãe, avistei um. Parado sobre um penedo, firme, fitava-me e, perante o grito assustado, que não consegui reprimir e me foi devolvido pela serrania, virou costas como que desprezando o meu temor.
«A da carroça» deu então meia-volta, abortando a empresa que a fizera responsável pela minha segurança. Não levaria fedelhos que não sabiam fintar os olhos de um animal sem fome e, por isso, inofensivo. O avô, ouvindo o relato insuflado pelo tom escarninho da rapariga, não gostou e a partir daí começou a fixar-me intensamente, de tal forma que me fazia sentir um alvo onde o seu olhar acertava, dardo incendiado pelo rancor.
Isto durou até que, numa noite de invernia, em que o sono tardava a levar-me para zonas mais ternas e em que ouvia os ratos, presas do veneno bem distribuído pela avó no sobrado, soltando o último estertor, me chamou, fazendo-me saltar da cama e me encaminhou até à escancarada porta da frente.
O frio caindo como lixa sobre a minha rósea pele deixava-a violácea e a voz muito vertical do avô dizia-me que não os temesse, que agora ficariam saciados e que bicho saciado não ataca, enquanto, no curral escuro debruado por uma luzidia geada, três lobos disputavam os pobres membros esfacelados do Fiel, cão que me acompanhava campo fora, em ingénuas incursões de rapaz de cidade que praticava férias no campo e me punham na boca palavras como «botânica», «flora» e «fauna», para designar aquilo em que os avós viam garantias de subsistência.
A mão do avô, tenaz ferrada sobre o meu ombro, fendia-o a meio abrindo um sulco que afugentava o coração, momentos antes subido à garganta, obrigando-o a refugiar-se em lugares incertos e a sangrar de órgãos apenas imaginados.
A voz do avô, endurecendo, ordenava-me, «Olha, rapaz, vê o mundo!».
Fechei os olhos, não vi, embora o cheiro acidulado do sangue, confundido com o da lenha queimada, alastrasse pela superfície total da minha pele, como se a memória adquirisse os tentáculos enormes do medo.