Baseado numa história verídica
Esta manhã, à conversa com o meu terapeuta, falei-lhe num livro interessante que acabei de ler. O meu terapeuta é, agora, das poucas pessoas com quem converso. Pago-lhe para isso. Conversamos durante uma hora, vai fazer três anos em janeiro. Durante a pandemia fizemos algumas sessões numa plataforma. Mas quando descobrimos que não tínhamos assim tanto medo um do outro passámos a encontrar-nos em jardins que resistiram ao encerramento, no adro de baixo da Igreja da Madalena ou nos Olivais. Nesses dias, ele começou a falar e não apenas a escutar. As circunstâncias excepcionais, como se dizia, aproximaram- nos. Nem eu estava tão doente, nem ele era, afinal, tão saudável. Ouvi algumas das suas preocupações, esperanças, desabafos. Com o tempo ele foi esquecendo o objetivo destas sessões. De vez em quando, no fim do isolamento obrigatório, ou no fim de cada mês, quando pago as sessões, ele retoma o figurino da relação terapêutica. Mas depressa se esquece. Continuo a ir, porque me faz bem, pauta a minha semana e custa-me terminar uma relação que fui eu a começar. E pago, porque presumo que vivo uma situação mais desafogada que a dele. Mas já não espero nada destes encontros, a minha vida pacificou-se, não desenvolvo a mesma ansiedade à exposição pública. E como sou mais velho que o meu terapeuta, sinto que lhe conto episódios com algum interesse, que de certa forma dou alguma profundidade à sua vida um pouco monótona. Falei-lhe então do último livro que li. Ele perguntou o que me tinha levado a procurar esse autor. E depois: — O que apreciou o Fausto particularmente nesse livro?
Ambas questões formais aceitáveis, às quais respondi com agrado, por me parecerem que podiam levar-me a aprofundar os motivos do meu entusiasmo.
Mas ele não esperou pela resposta e acrescentou:— É baseado em acontecimentos verídicos?
Não é provável que o meu terapeuta leia estes textos. Aliás, como já disse mais do que uma vez, não é nada provável que um leitor comum chegue a este momento do texto, ultrapassados que foram os 2.000 caracteres. Estou por isso particularmente à vontade para confessar que esta frase me irrita particularmente.
Encontro-a nas capas dos livros que evito, nos anúncios dos filmes de streaming. Ao lado das obras de divulgação e auto-ajuda, dos livros de breves celebridades, obras de ghost writers, posts do Facebook, blogs de psicólogos e nutricionistas, osteopatas e doulas. Acho quase insultuoso que um autor que se preza, permita este tipo de publicidade às suas obras, tantas vezes colocada em cintas ou autocolantes. Como se os diretores de vendas e pós produção tivessem ganho o comando das editoras e interpretassem assim o gosto médio dos leitores. Não é a ficção sempre baseada em histórias reais? O que aconteceu à realidade, que julga ser tão mais apreciada quanto mais a ficção a imitar, ou se reclamar dela? Existe então uma ficção que não se baseia na realidade? E está em baixa nos mercados?
Foi o que perguntei ao meu terapeuta. E esforcei-me por parecer interessado nas respostas dele. O que fiz sem qualquer custo por se tratar de questões que de facto me atormentam e apreciar a forma espontânea, por vezes ingénua, com que se exprime.
O que ele disse foi mais ou menos isto: — Eu aprecio a realidade. Ela basta-me, como fonte de mistério. Acho a realidade tão rica, complexa, por vezes tão opaca e incognoscível… Agradeço que escritores talentosos e realizadores de cinema, por exemplo, me devolvam a realidade, à sua maneira. Sei que nunca a perceberei bem. Mas esses textos contribuem para a sua simplificação — parou para pensar e acrescentou— ou devia dizer, para estabelecer mais um ponto de vista, eventualmente diferente do meu, mas seguramente mais elaborado, mais trabalhado, depurado pela fábrica das palavras, que funciona como um torno, um novelo que se desenrola… e um filtro, também, ao mesmo tempo. Gosto de romances que se anunciam baseados na realidade e mais ainda, justamente, quando abordam uma realidade que eu conheço, ou julgava conhecer. Porque me permitem perceber como a minha visão dos acontecimentos, mesmo aqueles que vivi ou presenciei, é afinal limitada e só ganha em ser confrontada com a de outros, reais ou imaginários, que o Autor convocou.
E acabou assim: — Mesmo algumas das coisas que me conta, deixe-me dizer-lhe, eu já vi, já li, mesmo em textos do Fausto que encontro por aí. E gosto de o ouvir de novo. Porque nunca são a mesma coisa. Não perdem pela repetição, se ela ocorre, não se preocupe. São como a paisagem numa caminhada. Muda sempre, mesmo que voltemos pelo mesmo trilho. Depois de o ouvir, raramente altero a minha opinião inicial. Mas sinto-a mais rica, mais facetada, mais incerta. Acho que esta palavra lhe agrada. Incerta. Uma história bem contada que é baseada na realidade, torna a realidade mais incerta.
Sinestesia sexual
Há pessoas que veem cores ou sentem sabores quando orgasmam. (Perlita, in Osso 24)
O orgasmo rosa é como o raio verde. Houve tempos em que estive na praia até ao por-do-sol a olhar para o horizonte, sozinho ou com amigos a quem comuniquei o entusiasmo. Não é como aquela sensação de subir ao cimo de um monte, sem luz elétrica nas redondezas e, deitado no chão em decúbito supino, olhar para o céu estrelado. Se conseguirmos este isolamento, ao fim de pouco tempo percebemos que vogamos no espaço sideral. Qualquer pessoa e muitos outros animais podem sentir isso. Basta que saibam o que é o espaço sideral, e ajuda que tenham visto Interstellar, Solaris, 2001: Odisseia no Espaço. Olhar o firmamento à noite é importante para se perceber Kant, por exemplo. Foi ele que escreveu uma frase que repito como uma oração esquecida:
Duas coisas enchem o coração com um espanto e uma reverência tanto mais renovados quanto mais frequente e intensamente neles meditamos: o firmamento estrelado acima de nós e a lei moral dentro de nós.
Os pernósticos, os céticos, não confiam senão na razão. Não se pode confiar na razão e desconfiar dos sentidos. Se desconfiarmos dos sentidos, acreditamos em quê? É muito perturbador acreditar que os olhos de Ana B. não são azuis. Ou são azuis apenas para olhos como os meus e um córtex visual como o meu.
Já o raio verde existe sobretudo para os cinéfilos que gostam de Eric Rohmer, o cineasta que em 1986 rodou em Inglaterra o filme Le Rayon Vert. O filme é muito chato como outros de Rohmer. Partilha uma característica de alguns seres muito belos. Quando os vemos, aguardamos por uma revelação que não chega a ser produzida.Este filme é baseado no livro de Jules Verne com o mesmo nome. Segundo Verne, Rohmer, e uma legião de acólitos anémicos que se foi extinguindo nos anos 90, há um momento ao entardecer, em que quem estiver atento vê o raio verde. E o raio verde tem o poder mágico de fazer com que os pensamentos sejam audíveis. Isto só funciona, no entanto, desculpem ter de sublinhar, para quem acreditar, estiver atento e tiver tempo apara esperar por esse momento único.
Passa-se o mesmo com o orgasmo rosa. Nem todas as mulheres têm orgasmo, o que é estranho. Se o orgasmo feminino constituísse uma vantagem evolutiva, então devia ser a forma mais espalhada de gratificação na relação heterossexual. Pois parece que não. A evidência científica afirma que as mulheres têm um orgasmo mais fácil em estimulação solitária, do que penetradas por um cavalheiro missionário. Sendo a história da vida íntima uma ciência recente, não sabemos exatamente como se juntavam os nossos antepassados da Horda Dourada, do Império Persa, de Bizâncio, do grão- ducado da Lituânia. O conhecimento do comportamento sexual das populações americanas pré-colombianas é também prejudicado pelo facto dos registos escritos serem feitos por padres católicos celibatários, mais preocupados com a salvação das almas e a extração da prata. E os objetos que resistiram e chegaram até nós, podem ter sido obra de artistas visionários ou exibicionistas e não reproduzirem o acasalamento comum. Em qualquer dos casos é difícil, fora da arte contemporânea, encontrar a expressão do orgasmo. E muito menos do orgasmo rosa.
Voltando à teoria evolucionista. O sexo é uma das formas de reprodução. A sua função fundamental biológica é a reprodução, como dizem os crentes enérgicos, o deputado do CDS celebrizado por Natália Correia e o pai das crianças de Famalicão atormentado pelas aulas de Cidadania. O prazer sexual é um produto colateral, que pelo exagero de meios recrutados para o efeito se autonomizou e ampliou. Não é debalde que se constrói um monumento de vascularização, tecidos esponjosos, mucosas, glândulas anexas, pele sensível e arrepiada, redes e plexos nervosos, vias condutoras, neurotransmissores, áreas cerebrais devotadas. Um equipamento assim não se faz para apreciar endivias. Mas, até há pouco tempo, o orgasmo feminino devia conferir uma vantagem evolutiva. As contrações rítmicas facilitam provavelmente a entrada de esperma no fundo vaginal, no útero e nas trompas, onde, na escuridão química, se dá a fecundação do óvulo. A maior parte das fêmeas humanas são descendentes de antepassadas orgásticas. É normal que os códigos morais religiosos tenham interferido na regulação da sexualidade e que o tenham feito desde tempos imemoriais. As manifestações da sexualidade genital, sobretudo no orgasmo, mostram o ser humano desprovido da razão. Os adolescentes de hoje, nos recreios dos colégios chiques, perturbados pelo acesso imoderado aos filmes porno, reproduzem os gemidos do coito para gáudio e escândalo dos seus pares. Isso reflete a surpresa que constitui o abandono lascivo, o modo como se exprime de formas tão estranhas e a reserva a que é sujeito. É natural que as religiões a tivessem querido limitar ou regulamentar. Ou desviar para a experiência mística ou para formas de meditação transcendental em que se atingisse o mesmo abandono sem genitalidade. Mas como o orgasmo feminino necessita de mais tempo e de estimulação que o masculino, o coito heterossexual deve ter sido durante muito tempo um castigo para a maioria das mulheres e o prazer reservado para as lésbicas ou para os lupanares, onde as profissionais sabem fingir melhor.
Ou nada disto é verdade e o sexo deve ter sido recreativo desde o início. Ou o facto de uma razoável percentagem de mulheres não atingir o orgasmo não significa nada, porque pode haver prazer sem orgasmo e os juvenis masculinos com ejaculação precoce são um exemplo de que não é necessário sentir nada e quase nada ter para recordar.
Parece que me estou a afastar do orgasmo e muito mesmo do orgasmo rosa. Estou apenas a recriar o tempo feminino da sua produção. A vogar na mente das mulheres enquanto elas percorrem, peripatéticas, os caminhos da sinestesia que lhes permite aceder às diversas cores da cegueira, à cadeira elétrica, ao túnel, à estação da linha do Tua, ao momento mágico em que o corpo em movimento ascende a uma altura em que deixa de sentir o seu peso, se transforma em corpo celeste e passa a depender apenas do tipo de órbita a que acedeu. Então, se teve sorte, pode ver todas as cores do espetro e sabendo-lhes o nome, cegar de diversas e variadas maneiras.