Número 5

29 de Maio de 2021

A CANFOREIRA DE BENCANTA

Berta Isla

LUÍS JANUÁRIO

Berta Isla, de Javier Marías é, à sua maneira, uma obra prima clássica. Clássica porque o leitor percebe, desde o começo, que vai aprender qualquer coisa de profundo. Ou que se vai deparar com questões fundamentais. Cobrindo um período que vai desde os anos 60 até à atualidade, um tempo narrativo que coincide com a vida de Marías, tem como personagens principais, alternando-se na narração, um casal que a turbulenta história da segunda metade do século XX separou e um narrador omnisciente.

Marías disse, numa entrevista recente, que escrevia sobre essa época porque a conhecia e porque não estava à espera que, hoje, os jovens e os velhos decaídos como ele, com quase setenta anos, discutam temas de tal intensidade. Berta Isla é um livro sobre a espera, a identidade, o embuste, a mudança e a permanência, o Estado e as razões de Estado, os fins e os meios, o tempo que passa, a influência, o destino e o medo, a volátil realidade.

Os espaços narrativos são a Madrid dos últimos anos do franquismo até aos anos 90 e Oxford, que Javier Marías tão bem conhece e que inspirou o ciclo de Todas as Almas (1989), Negro ombro do tempo (1998) e O teu rosto amanhã (2002-2007). A Oxford da guerra fria, onde todos os professores podem ser espiões e todos os espiões podem ser agentes duplos, onde Marías ensinou entre 1983 e 85 e onde, no Museu Ashmolean de Arte e Arqueologia, o conheci e apresentei ao meu professor António Torrado da Silva quando, antes de ler Todas as Almas, ele me dizia que não havia nenhum escritor verdadeiramente novo.

Berta Isla é um livro intensamente cinematográfico. Custa a crer não ter sido, ainda, adaptado ao cinema. A única explicação que encontro é a iliteracia dos realizadores e produtores e o gosto do público, como se diz, que enche de lixo a Netflix e os canais de streaming.

Alguns momentos fundamentais: o encontro entre Berta e o bandarilheiro durante uma perseguição policial na Madrid franquista, os últimos instantes entre Tomas e Janet, a cilada a Tom por Tupra tendo em contraponto a sedução à professora, o reencontro, 20 anos depois, do apoderado e de Berta, as passagens que referem o que se vê da varanda da casa da praça do Oriente, na direção das copas das altas árvores da praça do Oriente.

Vou deter-me brevemente num que me parece fulcral para a compreensão do universo de Javier Marías e dos seus procedimentos narrativos. Trata-se do momento em que é evocado Henrique V de Shakespeare, numa conversa entre Berta Isla e Tomas, o seu marido.

Na peça de Shakespeare, na noite que antecede uma batalha, o rei Henrique V, disfarçado, abandona as tendas reais e junta-se a três soldados que não dormem. Um deles exprime as suas dúvidas de forma magistral e a certa altura exclama: “Árduas contas haverá de prestar o rei se não é boa causa a da sua guerra”.

Quem evoca esta cena é Berta, capaz de a reproduzir bem, porque preparou uma aula sobre o drama. E diz que o soldado que se vai confrontar com o rei disfarçado se chama Bates. Ou Williams. Esta imprecisão é característica. O casal amigo pode ou não ser uma parelha de espiões, uma visita que fazem a sua casa pode ou não ser ameaçadora, um homem aproxima-se de Berta pelas costas e ela sente a sua proximidade e deseja-a ou repudia-a, o pai de Tom sabe que o filho morreu, mas acredita que pode estar vivo, Mr. Tupra é Ted Reresby, a imitação que parece perfeita de Walter Brennan pode ser afinal a de Charley Grapewin, os mortos podem estar vivos, os que desapareceram podem voltar.

Eles discutem inicialmente se se deve combater por uma causa que não é a nossa porque as causas são sempre as “dos representantes do país”, e estes “são sempre temporais e se desautorizam uns aos outros, à medida que se vão sucedendo”.

Na peça de Shakespeare, um dos soldados ataca o ponto de vista do rei e este, disfarçado, defende-o (defende-se, escreve Marías) com exaltação. Acabam por se travar de novo de razões e separar trocando as luvas, para que, caso sobrevivam, se possam reconhecer e, nessa altura, resolver a contenda. O que vem a acontecer, alguns dias mais tarde, estando Henrique V rodeado dos seus capitães.

E nessa altura, o soldado Williams, percebendo que o seu anterior opositor na discussão era o rei, e que assim cometera grave crime de injúria, argumenta que está inocente. Diz ele: “ …pois se Vossa majestade fosse aquele por quem o tomei, não incorrera em qualquer ofensa e do que sofreu sob essa figura rogo que o atribua a si próprio e não à sua culpa”.

Nesse ponto da discussão o dilema é já outro. O de saber se as informações obtidas pelos infiltrados podem ser usadas contra as suas vítimas. Que a investigação “também depende da limpeza ou sujeira com que se investiga”.

Nesta longa passagem, Berta confronta Tomas com as dúvidas sobre a legitimidade moral da sua conduta. E fá-lo com entusiasmo, desfiando argumentos históricos e morais. Tomas responde como pode, um pouco surpreendido. Mas a partir de certa altura fá-lo com um sotaque desconhecido. Inicialmente, o sotaque norte americano de atores de papéis secundários. Walter Brennan, por exemplo, velho ator de westerns, de Howard Hawks a John Ford, galardoado com óscares premiando o melhor ator secundário, celebrizado por, depois de um grave acidente em que perdeu os dentes, ter feito papeis “de ator sem dentes”, na descrição de Berta, “como se mascasse tabaco ou lhe faltasse a dentadura”.

Esta alteração da linguagem, um elemento formal da narrativa, num nível que só pode ser intuído superficialmente pelo leitor, é feita subtilmente, na narrativa de Berta, com o aparecimento de pequenas frases dizendo, primeiro, que “a voz dele soou rouca e estranha como se não fosse a sua, ou lhe saísse de uma armadura e não do peito.” E mais à frente, brevemente, “a voz inverosímil”, “a voz de um velho” e depois, de cada resposta de Tomas, convictas e indignadas, precisando que a voz que se ouve é a do ator de Rio Bravo, que viram os dois nas sessões da Cinemateca quando estudantes e que agora é “cada vez mais sinistra aos seus ouvidos”. E em seguida a voz transforma-se na de um norte-americano jovem, e mais tarde na de um inglês “pouco educado, desses que tendem a aproximar todas as vogais do som o, e em vez de “laik” ou “mind”, pronunciam “loik” e “moind”, para dar dois exemplos”.

Este artifício, a modificação da voz através da imitação de outros registos, faz flutuar a personagem, apesar da constância argumentativa e da coerência do discurso.  Este indivíduo próximo, o marido de Berta, pode afinal ser muitas outras pessoas. E isso é terrífico, porque exibe a capacidade dele se assumir diferente e com isso enganar, fazer-se passar por outro, infiltrar-se no inimigo, ouvir dos soldados as simples convicções, falar como eles para mais tarde os punir por aquilo que lhes deu confiança para expressarem. 

Estes capítulos de Berta Isla são um brilhante exercício literário. Mostrando como a voz do narrador, um elemento da linguagem que, no caso, não é acessível ao leitor, contamina decisivamente o seu discurso e lhe modifica a textualidade.

Aquele que é muitas pessoas é um burlão. Ameaça a crença na identidade do eu. E fá-lo de forma espetacular. Com êxito no show de variedades, mas trazendo para a vida real a exposição dos artifícios de engano e sedução que caracterizam a espécie animal a que pertencemos, onde tudo é signo e metáfora, tudo arbitrário e relativo, nada é o que parece, a vigilância do outro faz parte das regras elementares de sobrevivência. Não basta ouvir o outro para decidir das suas razões. É preciso estar atento aos mínimos pormenores. Como fala e como se mexe, como baixa os olhos, como se veste, como se cala. As marcas de uma outra vida: cicatrizes que não desaparecem (“a mão de Tomas percorre o espaço da cicatriz desmanchada”).

É preciso decifrar a mente dos outros. É preciso ter uma teoria da mente, mesmo da gente com quem se dorme. É preciso manter a guarda e apesar de tudo confiar. Há um momento em que esta tensão é insuportável. Sobretudo porque habitamos um corpo de emoção que diz o contrário. Aspira ao contacto e à fusão, quer causas e consequências, sossego, proteção e certezas. Há um momento em que, como Berta Isla, se “sucumbe”.