Número 17

8 de Janeiro de 2022

EXCURSÕES

Cagarros no canal

Paulo Ventura Araújo
Fajã do João Dias, São Jorge, Açores


Cais da Madalena, sete da tarde de um domingo de Agosto. Vozes de aeroporto, em português e inglês, anunciam pelos altifalantes partidas com destino, agradecem aos passageiros por terem aguardado, convidam-nos a embarcar. Há um tapete rolante na sala contígua onde os passageiros recém-chegados recolhem as suas malas. Acaba por ser estranho que o Gilberto Mariano, a bordo do qual chegaremos daí a hora e meia a Velas, São Jorge, seja um barco e não um daqueles aviõezinhos a hélice da SATA. Num dia de mar tranquilo, as ondas embalam-nos com uma suavidade que nenhuma viagem aérea, mesmo livre de turbulências, pode igualar. Os passageiros habituais deixam-se ficar sentados no convés, enquanto os turistas se denunciam tanto pela roupa como pela avidez com que, debruçados na amurada, correm os olhos pela costa da ilha e interrogam cada onda para saber se ela esconde uma trupe de golfinhos. Corrigindo a rota, o barco afasta-se agora para mar alto e, pouco depois, estamos bem a meio do canal – como é costume chamar no triângulo ao mar que separa as ilhas: há um canal entre o Faial e o Pico e outro, bem mais amplo, entre o Pico e São Jorge. Deste ponto, São Jorge e Pico são duas longilíneas faixas de terra, uma delas com um grande inchaço a meio, fechando o horizonte cada uma por sua banda. A certa altura, o alvoroço dos estreantes obriga os habitués a sacudir a modorra e a confirmar que aquela enorme cauda agitando as águas é mesmo de um cachalote – que logo depois mergulha e desaparece. Foi um brinde inesperado que não estava incluído no preço do bilhete. O que está garantido, durante os meses de Verão, é seguirmos maravilhados o voo deslizante dos cagarros que rasam as ondas no rasto branco que o barco vai deixando no mar: são tantos e tão velozes, quase sem bater as asas, apenas se inclinando levemente para ajustar a direcção. Escoltam-nos durante longos minutos, ficando para trás quando nos aproximamos do porto de Velas. Temos encontro marcado à noite, quando estes silenciosos pescadores diurnos recolhem à costa e se transmudam em palradores incansáveis, num dialecto gutural, algo inquietante, emitido por esvoaçantes manchas que branquejam difusamente no negrume.

É com o canto nocturno dos cagarros que Agosto atinge a perfeição e se distingue radicalmente dos meses sedentários e rotineiros vividos no continente. Embora aleguemos outras razões – como a inventariação e mapeamento da flora das ilhas –, é na verdade o sortilégio dos cagarros que, ano após ano, nos faz (a mim e à Maria) voltar aos Açores. Nem todas as ilhas são igualmente indicadas para esse bálsamo auditivo: nidificando os cagarros em zonas escarpadas e inacessíveis, é muito raro ouvi-los em lugares onde a costa é baixa, como na Madalena (Pico) ou em Ponta Delgada (São Miguel). Em São Jorge e nas Flores, por contraste, há serenata obrigatória, começando pelas 10:30 da noite e prologando-se até à madrugada, mesmo junto à janela do nosso quarto, que deixamos invariavelmente aberta. Se a cantoria nos perturba o sono? Ora essa, ela é tão natural e repousante como o rebentar das ondas.

Não nos podendo fazer ao mar todos os dias, há que dar serventia às horas diurnas passadas em terra. Em São Jorge, ilha estreitíssima mas muito comprida, bastam duas ou três horas para descer a pé desde o cume mais elevado até à costa, isto para quem vá tão desatento que nada – nem a paisagem ondulante de picos e crateras, nem os prados de flores amarelas, nem a vertigem das fajãs – o faça quedar-se em contemplação. Até a toponímia da ilha é apaixonante: Pico da Esperança, Grota dos Patalugos, Norte Grande, Fajã das Almas, Fajã do Além, Fajã do Ouvidor, Fajã dos Cubres… Quem terá sido o poeta que inventou tais nomes? Na costa norte de São Jorge, a altitude média das falésias cortadas a pique ronda os 400 metros, com os povoados situando-se todos à cota elevada. Contudo, lá em baixo, as fajãs – que são estreitas faixas de terreno junto ao mar formadas ao longo de milénios pelas derrocadas nas encostas – são ocupadas por hortas e por esparsas casas de um só piso, caiadas de branco. Ninguém vive em permanência nessas casas, mas os proprietários visitam-nas assiduamente para amanhar as hortas ou tão-só passar os fins-de-semana. Algumas fajãs são acessíveis por estrada (asfaltada ou não), a outras só se chega a pé por caminhos talhados em ziguezague nas encostas. Na Fajã do João Dias, uma senhora de alguma idade, que já há dias por ali permanecia sem outra companhia que não a dos gatos, ofereceu-nos café em troco de conversa. Num outro ano, na Fajã do Além, não encontrámos gente em nenhuma das casas, mas sabíamos que alguém viria, dias depois, recolher as lustrosas meloas que vimos num quintal. Descer 400 metros, cuidar da horta, descansar uma noite ouvindo os cagarros, subir por onde havia descido, sempre numa solidão povoada de memórias: Robinson Crusoé não quereria outra vida.