Número 39

11 de Maio de 2024

IDEIAS

Chalupas

RITA ASSUNÇÃO SERRA

Doppelganger é sobre os chalupas”, eis o resumo fácil do último livro de Naomi Klein (2023). Mas o que consta nas suas 399 páginas é mais subversivo: a tentativa de revelar as sombras do ego projetadas na sociedade, a partir de um conflito pessoal que a autora escala a um conflito global.

Durante a pandemia de COVID-19, a palavra Naomi confunde nas redes sociais dois seres distintos, Naomi Klein e Naomi Wolf. Para Klein esta confusão é insuportável e resulta no desaparecimento do seu “eu digital” enquanto a sua “dupla” (doppelganger) prospera. A autora de No Logo e Shock Doctrine experimenta na pele a usurpação da sua marca pessoal, vê-se despreparada para os confinamentos e treme com medo da doença. Pela primeira vez sente o choque em lugar de o descrever e aprende que saber muito do capitalismo não a torna mais resiliente aos seus desastres. Fica em casa e assiste aos vociferos de Naomi Wolf contra o ataque pandémico e à distorção da sua crítica ao capitalismo corporativo. Klein perde a fala ao ver as suas ideias ridicularizadas e tomadas a sério por pessoas que parecem trautear a música sem conhecer a letra: a desconfiança das elites pelos chips dos passaportes sanitários, as vacinas da indústria farmacêutica que tiram a alma, e a projeção de tudo o que os

“anti-chalupas” afirmam dos “chalupas” ― que são egoístas e nos colocam em risco. Klein encontra a equação que motiva a ascensão da sua dupla (narcisismo [Grandiosidade] + viciação nas redes sociais + crise de meia-idade ÷ vergonha pública = meltdown da direita), e procura compreender as multidões que aderem ao seu discurso.

O livro é um thriller psicológico da sua vivência. A autora descreve a desfiliação que sente na pandemia no Canadá e observa a separação das famílias entre os que aderem à narrativa oficial e os que se rebelam contra ela. Atribui à “outra Naomi” o papel de instigadora nas plataformas digitais e observa a aliança com Steve Bannon, estratega chefe da Casa Branca no governo de Trump. Documenta em detalhe a natureza da coligação que surge entre a extrema-direita e a legião de novas profissões ao serviço da pseudo-espiritualidade, do sucesso e bem-estar costurada por “linhas diagonais” que aglomeram pessoas de classes, etnias e orientações políticas distintas. Esta coligação cresce na sombra dos fracassos e dissonâncias dos movimentos de esquerda, que falham sistematicamente em chegar às pessoas por serem elitistas, pouco ou nada inclusivos e demasiado académicos. O movimento MAGA (Make America Great Again) cresce ao elogiar a inteligência dos participantes e a dedicação incansável das mães que protegem as crianças da educação antirracista, ideologia de género e uma casa de banho para todxs. Klein assiste à proliferação de pequenos e grandes negócios nestas plataformas, como a venda de camisolas “eu faço a minha própria investigação” e outras formas criativas de financiamento. Do outro lado do espelho, os “anti-chalupas” insultam estas mães chamando-lhes “Karens”1 ― um termo inerentemente racista, sexista e classista para pessoas racistas, sexistas e classistas. Klein aprofunda o fosso e procura compreender a relevância política deste novo movimento, enquanto acompanha o seu marido Avi Lewis em campanha pelo NPD (New Democratic Party), de centro-esquerda. Porta a porta deparam-se com mulheres de robe em casas com painéis solares e cães simpáticos que lhes dizem “eu e a minha família votamos sempre em vocês mas este ano vamos votar no PPC” (People’s Party of Canada), de extrema-direita. Uma das conversas é particularmente reveladora: A Naomi “original” apela ao voto no NPD porque defende os cuidados de saúde para todos, e a senhora objeta: “eu não preciso, tenho um sistema imunitário forte”. Ainda inocente, retruca “mas há pessoas que não têm”, e ouve da boca da Karen: “eu penso que essas pessoas devem morrer”. Klein estuda os aliados da “outra Naomi” e de Bannon ― instrutores de yoga, massagistas de energias vitais e tantos outros impossibilitados de exercer os seus negócios durante a pandemia. Quanto mais a autora mergulha no mundo do espelho, mais faz a crítica do mundo que o origina, assente na precariedade laboral onde todos têm de estar no seu melhor para sobreviver, aperfeiçoando o corpo continuamente. Aqui sou particularmente tocada: o filho de Klein é autista, e acompanho mesmerizada o nascimento da eugenia nos EUA que daí se espalha para a Europa, tendo como apogeu o terror máximo do nazismo. Ao afundar-se nas raízes do nazismo a nossa Naomi desenterra o colonialismo, no momento em que o genocídio das crianças indígenas no Canadá através das escolas residenciais é exposto. O propósito era erradicar a “parte indígena” das crianças, matando-as num ambiente que cheirava a fome. A descoberta das valas comuns comoveu a sociedade canadiense e motivou os camionistas a desfilar pelo país em solidariedade com as populações indígenas, exibindo bandeiras laranjas com as palavras every child matters. Oito meses depois há um novo protesto de camionistas que exibem as mesmas bandeiras, desta vez pelo “genocídio” das crianças nas escolas pelas restrições COVID-19. São estas as contradições que a autora assinala continuamente ao longo do livro: a distorção das palavras e esvaziamento do seu sentido. Cava as trincheiras na linguagem antifascista ― defende que “genocídio”, apartheid e Holocausto devem ter sentidos precisos ancorados na mentalidade supremacista que os torna possíveis. Só assim será possível combater as crenças em corpos superiores versus erros da natureza, com sistemas imunitários fortes e produtores de bebés com bons genes, sustentados por bitcoins e yoga prenatal.

Naomi Klein explora a própria sombra e abre o capítulo sobre identidade judaica com uma frase da sua mãe: “é por serem judias que vos confundem”. Após situar o holocausto numa série de horrores coloniais, chega inevitavelmente até a Palestina. Apresenta Israel como a política doppelganger por excelência, que defende o seu povo contra os árabes outros. Conta-nos que entrou facilmente como jornalista em Gaza na guerra de 2008-2009 por ser judia, mas que a barraram em Erez para deixar claro que só escapara por ser judia. Aprende que “nunca mais holocausto” significa unicamente nunca mais a judeus. Termina o livro com um apelo à aniquilação do ego, aproximação aos corais e ação coletiva, sem saber como o fazer além do protesto na rua.

Ao ler Doppelganger, recordei a amiga israelita com quem vivi alguns meses. Saiu de Israel após a ocupação das praças de Tel Aviv em busca de uma vida mais real. Foi criada num kibutz onde tudo era de graça e o trabalho coletivo, e assistiu à transição para o capitalismo na adolescência. Chamaram “geração perdida” aos que, tal como ela, nunca se adaptaram à mudança. Hoje vive numa caravana semi-destruída, sem vacinas nem medicamentos, acompanhada por uma professora alemã que se despediu por não suportar as restrições da pandemia. Recordei também a pandemia em Portugal, uma das nações mais vacinadas entre Malta e Nicarágua.2 Lembrei-me dos atos de polícia feitos das janelas contra as pessoas que passeavam os cães muitas vezes (soube recentemente que houve cães adotados para serem passeados). Veio-me à memória a ascensão dos “negacionistas” e dos tempos de André Dias, os que meteram as fotografias dos braços vacinados com o pensinho nas redes sociais e os testes da COVID-19. Penso que discutiam entre si qual a melhor vacina, se a Pfizer, Moderna ou AstraZeneca, e no cartão que dizia algo do tipo “para qualquer problema ou efeito secundário contacte diretamente o fabricante”. Recordo o momento singular em que intervim no Facebook sobre a investigação das vacinas e de me dizerem “se dizes que a ciência não produz certeza para mim és muito néscia” pisc pisc com emojis. Revivi o início da pandemia e os caixas heróicos que nos deram mantimentos, as máscaras costuradas em casa e mais tarde os que tiravam a máscara cirúrgica para tossir. A um dado momento, Naomi Klein sente um calafrio: será que suprimimos a crítica para não sermos chalupas como eles? Quantas vezes nos censuramos para não sofrer esta acusação? Refletindo sobre o passado, o virologista Pedro Simas afirma: “até um cientista tem de ponderar bem o que diz, senão pode ser cancelado”3. É difícil conversar sobre “ciência” e “realidade” com pessoas que não têm forma de a observar ou partilhar. As narrativas, fotografias e sequências do vírus tornam-se um conto como qualquer outro, impossível de ser julgado criticamente. Os grandes perdedores da pandemia foram os cientistas e profissionais de saúde, manifestamente impedidos de cumprir o seu papel social e esclarecer “as massas”. No final de contas, quem sabe para que serve uma vacina ou a diferença entre infeção, exposição e contágio? A versão oficial é que fomos salvos do vírus da China pelo capitalismo americano e que o Estado nos protegeu como Israel protege os seus, preparando-nos para o fascismo que poderá vir a seguir. Não seria inédito: em 1904 pensava-se que as pessoas vacinadas contra a varíola ficavam com cara de bovino e as ações de saúde pública resultaram na favelização.4 O importante é saber que podemos tornar-nos facilmente nos nossos duplos. O resto fica para outro ensaio.

1  https://en.wikipedia.org/wiki/Karen_(slang)

2 https://www.nytimes.com/interactive/2021/world/covid-vaccinations-tracker.html

3 https://youtu.be/AUgvEa2LcRk?si=pSWKGvIHbdDSxVJR

4 https://portal.fiocruz.br/noticia/cinco-dias-de-furia-revolta-da-vacina-envolveu-muito-mais-do-que-insatisfacao-com-vacinacao