Número 39

11 de Maio de 2024

ESTÓRIAS DE FAMÍLIA

Chamou-lhe Salvaterra

MARTHA MENDES

Nós somos muito mais da terra onde nascemos, e onde fomos criados, do que imaginamos.

José Saramago

A história do Avô Inácio começou na água. Filho de um pescador e de uma varina da Murtosa, herdou dos pais a vida de embarcadiço nómada que ciranda atrás do peixe: nos meses em que a Ria de Aveiro passava de generosa a avara, a família rumava a outras geografias marítimas e fluviais. Com ele, aprendi a associar a geografia à fauna marinha: Matosinhos para as sardinhas, Vila Nova de Milfontes para a lagosta, Salvaterra de Magos para o sável. A migração estava debaixo da pele do meu Avô: um jeito de estar em casa, sem ter casa.

Ao fim de alguns anos de sazonais mudanças atrás das safras, a família acabou por se fixar em Salvaterra. O meu Avô já nasceu lá e por lá cresceu. Ele contava que foi à escola durante três dias. Ao terceiro dia, o professor primário apanhou-o distraído e deu-lhe uma coça. O pequeno Inácio ― que já então manifestava traços do homem de temperamento forte e irredutível em que haveria de se tornar ― saiu da sala, partiu a lousa e foi para casa dizer ao Pai que não ia mais à escola. “Se não vais para a escola, vais para o barco”. E assim foi. Passou da escola para o Tejo ― um detalhe premonitório, porque quase tudo do tanto que sabia sobre o mundo aprendeu sobre as águas.

Mas o meu Avô, que queria ser marceneiro, nunca se sentiu em casa dentro do barco. Era-lhe como o chão, sempre temporário: um jeito de estar em casa, sem ter casa. O meu Avô queria uma profissão e achava que andar a trabalhar com o Pai não era uma profissão. Zangado com o rumo da vida, e já sem lousas para partir, decidiu partir de Salvaterra e foi para Matosinhos, para a pesca da sardinha. Na impossibilidade de ir a casa, num tempo em que os quilómetros de um país tão pequeno se contavam em dificuldades, ia de vez em quando à Murtosa, onde tinha familiares. Foi lá que conheceu a Avó Maria ― e se ele teve alguma casa, foi ela.

Decidido a constituir família, partiu para a pesca do bacalhau, na Terra Nova, onde haveria de ficar uns anos, até os cunhados e o sogro, a viver nos Estados Unidos, lhe enviarem a carta de chamada. Ele respondeu: levou a mulher e os dois filhos mais velhos, dos quatro que tinham. Passados dois anos, chamou os outros dois, que tinham ficado com a Avó materna. Quando chegou ao outro lado do mundo, o meu Avô foi trabalhar para a construção civil, mas nunca se adaptou. A Avó Maria contava que ele definhava de dia para dia. “Levava o almoço e não lhe tocava, regressava a casa com a comida que tinha levado de manhã”. Assustada, a minha Avó começou a dizer que queria regressar a Portugal, que aquela não era a América com que eles tinham sonhado. Mas o meu Avô respondia sempre o mesmo: “Maria, eu ainda não cheguei à América”.

A América do meu Avô chegou uns meses depois, quando um amigo de longa data, padrinho da filha mais nova ― a minha Mãe ― também emigrante e pescador, lhe sugeriu que regressasse ao mar. E o meu Avô, no seu jeito de estar em casa, sem ter casa, lá foi outra vez para dentro do barco. O regresso ao mar acabaria por levar a Família Silva até New Bedford, uma cidade costeira da Nova Inglaterra, uma espécie de Little Portugal, onde os meus avós viveram mais de 30 anos sem nunca aprenderem a falar em Inglês, por absoluta falta de necessidade: o Português era a língua mais usada na cidade. Aqui, o meu Avô arranjou trabalho, embarcando com outros portugueses. Dez dias no mar, outros tantos em terra: bacalhau, lagosta, pescada, solha ― que o meu Avô ensinou-me a associar a geografia à fauna marinha.

Mais tarde ― e muito porque o meu Avô, em tempos, domou ondas altas para que eu pudesse caminhar sobre chão firme ― comecei a associar a Geografia aos livros. Para mim, que nasci em New Bedford mas deixei esta terra antes que o tempo me permitisse trazer memórias de lá, esta é mais a cidade de onde partiu o Ismael do Moby Dickcom pouco dinheiro na carteira, e sem qualquer interesse particular que o prendesse à terra firme, movido pela vontade de voltar a navegar e tornar a ver o mundo das águas ― do que a minha cidade natal. Já o livro do mar do meu Avô li-o na cédula marítima que ele tirou em 1942, um documento que a Tia Arminda guarda como um tesouro: da traineira em Matosinhos, foi para a pesca do bacalhau, no Senhor dos Mareantes, como maduro. De maduro passou a redeiro e do Senhor dos Mareantes foi para o Comandante Tenreiro. De redeiro passou a contra-mestre e do Comandante Tenreiro foi para o Capitão Ferreira, navio onde se fez mestre de redes. Em 1963, foi para o Santa Maria Manuela, embarcação onde acabaria por chegar a faina maior. Em 1966, foi para os Estados Unidos da América.

Depois de quase 15 anos a pescar nos Estados Unidos, em barcos de homens que tinham chegado antes dele, para traçar um caminho paralelo, o meu Avô comprou o seu próprio barco de pesca industrial. Tinha 5 ou 6 homens a trabalhar para ele ― portugueses acabados de chegar à Terra Prometida, alguns saídos da Murtosa, como ele, uns anos antes. Todos juntos, deixavam o cais de New Bedford e ausentavam-se por uns dias. Dez dias no mar, outros tantos em terra: bacalhau, lagosta, pescada, solha. Os filhos falavam Inglês. A Regina maquilhava-se e usava calças de ganga à boca-de-sino, como as americanas; o Rodrigo jogava futebol no Liceu; o Manuel tinha passado a ser o Manny. A casa tinha uma garagem anexa e um alpendre, como nos filmes, e ele conduzia um carro de mudanças automáticas.

O meu Avô tinha, finalmente, chegado à América. No seu jeito de estar em casa, sem ter casa, batizou o barco que lhe era, enfim, chão seguro. Chamou-lhe Salvaterra.