Número 36

30 de Dezembro de 2023

EXCURSÕES

Cidade pedonal

PAULO VENTURA ARAÚJO

Folheio o jornal que me dá o mínimo de respeitabilidade para estar no jardim, sentado num banco salpicado pela chuva, sem atrair a atenção compassiva dos raros transeuntes. Ainda novo e sem nada para fazer a um domingo, comentariam eles. Não tem família? Não pode dar uma corrida pela marginal do Douro para abater os quilos a mais? Ou, se não sofre de excesso de peso, para manter os músculos activos? Também não lhe faria mal juntar-se a algum grupo de excursionistas mais ou menos culturais conduzidos por um guia explicativo e gesticulante  –  falando talvez em inglês, que é a língua que mais se ouve por aqui logo a seguir ao espanhol (os portugueses sempre foram taciturnos e agora estão em clara minoria). Se um tal grupo por aqui passasse, o guia, logo após a pausa recreativa para as selfies com os bonecos escangalhados de riso, apontaria para o edifício neo-clássico ao cimo da escadaria pseudo-monumental e diria: Over there is the Palace of Justice, where wise old men have sat in judgment since time immemorial.

Depois da folia de sábado à noite, de que dão testemunho copos, garrafas e lixos diversos tombados pelo chão, domingo de manhã é um sossego. Está a acontecer, apareceria na Luso-CNN em letras gordas acompanhando imagens do jardim em que nada acontecia mas teria acontecido ou em breve iria acontecer. Ver-se-ia apenas, ao fundo à esquerda, alguém recostado num banco lendo o jornal. Se querem saber (não querem), leio as colunas de opinião antes de me debruçar, com aparente atenção mas suspeita ligeireza, nas páginas com a discussão do Orçamento de Estado para 2024.

Na falta de um moderno telemóvel para me fingir absorto, o jornal é o disfarce praticável, ainda que fraco. Os dias de chuva saturaram o ar de humidade, e esta é a época do ano em que é de novo possível acreditar no futuro. Estou aqui para espiar (talvez monitorizar seja o verbo certo) os polipódios, esses fetos de folhas pinadas que parecem desenhados por crianças e fazem poleiro nos troncos rugosos dos plátanos. São os mais fiáveis indicadores dessa feliz transição para um tempo benigno de chuvas diluvianas e ventos ciclónicos. Se fossem plátanos normais, de troncos lisos descascando-se continuamente num padrão marmoreado, os polipódios não saberiam como a eles se agarrar. Mas, nestes plátanos de troncos inchados, cobertos de musgos que captam e conservam a humidade, há muito lugar para os rizomas rastejantes dos fetos (que se apresentam revestidos por escamas arruivadas) se aninharem.

Os polipódios crescem nas árvores como cabeleira verde para disfarçar a calvície que não tardará. Também crescem nos telhados, beirais e varandas de todos os velhos prédios aqui à volta que não foram convertidos em alojamentos locais. Vejo-os das janelas da minha sala e até se instalaram nas desmazeladas floreiras. Admito que não precisava de visitar o jardim para os admirar, e em casa, sentado com mais conforto, também poderia ler o jornal – ou não ler sem ter de fingir que o lia. Acontece que as deslocações a pé pela cidade neste ano de 2023 colocam desafios interessantes, obrigando-nos a manter os sentidos mais despertos do que noutras eras menos convulsionadas. Ir até ao jardim da Cordoaria, a apenas 330 metros de casa em linha recta, acaba por ser uma aventura. Se me deixo levar pelo sonambulismo confiante de quem conhece estas ruas de olhos fechados, acabo encurralado em becos sem saída recém-criados pelas obras do Metro. À entrada das ruas e praças sitiadas por obras, é avisado estudar (se existirem) as placas indicando a saída do labirinto em que nos metemos. Do outro lado, causa não pouco espanto haver gente a circular, turistas sobretudo. Ou toparam também com a saída, o que não é feito de somenos, ou tiveram a argúcia de usar outro acesso. Quem os terá aliciado para uma escapadinha de fim-de-semana num estaleiro de obras?

Há ainda os buracos sem protecção, as pedras soltas nas calçadas que fazem esguichar água quando as pisamos (gargalhadas da audiência), o mobiliário urbano caótico, as obras que pedem desculpa pelo incómodo, as esplanadas que invadem passeios, os tuk-tuks alinhados na praça dos Leões junto à palmeira morta. Atravesso uma sebe de buxo, tropeço nos carris do eléctrico habilmente camuflados, e eis-me chegado ao jardim. Na alameda dos plátanos, mantêm-se os polipódios viçosos até Março ou Abril, depois secam e hibernam com a progressiva estiagem. Não sei se quero cá voltar durante os longos meses em que eles não estarão visíveis.


Polipódios no tronco de um plátano (jardim da Cordoaria, Porto)