Número 27

3 de Dezembro de 2022

MERCADO DE FUTUROS

Comércio justo

HÉLIO BARATA

Sicrano abriu a gaveta do balcão e reparou que não havia chocolate negro. Pensou que talvez o tivesse guardado no sítio errado, uma atitude que não lhe era própria mas que, em bom rigor, não podia excluir. Uns anos antes, tinha pendurado a toalha de secar as mãos no gancho da toalha de secar a louça e vice-versa, assim perturbando de forma irremediável a confeção do jantar. Na ocasião, não teve outro remédio senão encomendar comida de um restaurante que não utilizava ingredientes provenientes do comércio justo, mas felizmente os convidados não deram por nada e o jantar acabou por ser um sucesso. Desde então, passara a redobrar os cuidados na arrumação e posicionamento de todos os elementos respeitantes à cozinha. Mas é impossível eliminar completamente as distrações, impedir que o resto dos afazeres que a vida impõe se intrometam. Depois de recorrer ao arquivo de talões de compras e verificar que tinha, efetivamente, comprado uma tablete de chocolate negro, estendeu as suas buscas a todas as soluções de arrumação da cozinha e, depois, às restantes divisões. Após várias horas a maldizer a decisão de comprar um apartamento tão grande, não teve outro remédio senão concluir que a tablete não estava lá em casa. Talvez tivesse ficado esquecida na caixa do supermercado ou o saco tivesse um buraco pela qual ela caíra. No entanto, a intenção de fazer a musse de chocolate caseira não iria ser abandonada por causa daquele percalço. Calçou-se à pressa e dirigiu-se ao único supermercado que ainda estava aberto àquela hora, a pouco mais de um quilómetro dali.

O supermercado estava praticamente vazio, com apenas dois ou três clientes e um número reduzido de funcionários que se dedicavam aos trabalhos conducentes ao encerramento. Sicrano foi direto à prateleira certa, pegou numa tablete de duzentos gramas e dirigiu-se à única caixa aberta, onde uma senhora de idade pagava, moeda a moeda, um valor irrisório por algumas embalagens de hidratos de carbono. Colocou a tablete em cima da passadeira rolante enquanto tentava controlar a impaciência deslocando o peso do seu corpo de um pé para o outro. A senhora lá acabou de pagar, a passadeira rolante iniciou a sua marcha e a tablete deslocou-se até à caixa. Ele, a par, triando as moedas que sempre levava no bolso enquanto cumprimentava o funcionário, que mascava ruidosamente uma pastilha elástica e não lhe respondeu, apenas registou o produto e anunciou o preço a pagar. Só nesse momento é que Sicrano se apercebeu de que não tinha levado nada em que transportar a tablete. Pediu então ao funcionário que lhe vendesse um saco, ao que este respondeu que não havia sacos. Tinham acabado com os sacos e colocado um aviso na porta de entrada. Era por causa do ambiente, os clientes é que tinham de providenciar os meios de transporte das compras efetuadas no local. Sicrano ficou a olhar para o funcionário, a boca semiaberta de quem quer protestar mas sabe da inutilidade de tal empresa. O funcionário devolveu-lhe o olhar enquanto continuava a mascar a pastilha.

Desamparado, Sicrano pagou enquanto pensava numa solução que teimava em não lhe surgir. Como iria ele fazer para transportar aquilo até casa? Não poderia levar a tablete na mão, ainda eram quase vinte minutos pelas ruas que, embora despidas do movimento humano das horas mais vivas, não estavam desertas. Era muito possível que alguém o visse a transportar compras na mão, uma vergonha pela qual não estava disposto a passar. O funcionário estendeu-lhe o talão, ele apanhou-o com um gesto brusco e amarfanhou-o dentro do bolso. As compras do cliente seguinte começaram a aproximar-se da caixa. O tempo esgotava-se. Perguntou ao funcionário se podia levar um carrinho de compras, prometendo que o devolveria sem falta no dia seguinte. A resposta foi negativa, só se podia levar os carrinhos até ao parque de estacionamento exterior. Desesperado e mortificado por não levado o telemóvel nem dinheiro para um táxi, Sicrano dirigiu-se até à entrada do supermercado, desbloqueou um dos carrinhos com uma moeda de um euro e colocou lá dentro a tablete. Olhou para o funcionário da caixa, que estava ocupado a registar uma serapilheira de batatas, controlou a posição do segurança vestido de kevlar, do lado de fora da porta automática, vidrado num dispositivo móvel. Hirto, com os músculos faciais tensos e concentrado em não hesitar, saiu do supermercado e foi empurrando o carrinho através do parque de estacionamento. Quando estava quase a chegar à via pública, ouviu um apito. Virou-se, era o segurança. Naquele momento, só lhe veio à ideia correr, mas o carrinho, com as rodas empenadas, atrasava-lhe o passo. Apesar disso, o segurança calculou que já não conseguiria apanhar Sicrano antes de este chegar à rua, onde, por lei, já não poderia agir. Gritou-lhe que parasse e, perante a determinação de Sicrano em não o fazer, levou a mão ao coldre tático de axila, sacou da D54K semiautomática de 9 milímetros, apontou e disparou um só tiro certeiro. Sicrano, mortalmente atingido na nuca, tombou para dentro do carrinho de compras, que continuou a rolar até embater numa trotineta de aluguer que alguém deixara a obstruir o passeio.