Porquê escrever? Qual a importância da escrita quando parece que se arrancou a palavra da imagem, pelos desatentos do mundo, que não distinguem um vulto de uma sombra, um lampejo de um símbolo. A insatisfação é constante, e o erro mais provável serei eu, no mau jeito do moralismo. Mas para efeitos de prosa e experimentação, apontarei uma desgraça ao alvo mais próximo e terrível, não olhando a consequências e contragolpes – o desplante, portanto:
A vós, caros leitores de rijos ossos, retorno como um inverno, apresento-me com esta injustiça de condenar toda cidade, nunca menos que todos vós, para não deixar um único culpado à solta. Claro que muitos inocentes serão encarcerados nesta minha tirania, despojados das suas mãos atentas, impedidos das passeatas que engrandeciam os plátanos, roubados às famílias e amigos que tanto esforço empregavam para amar, privados de um silêncio consequente que usavam a favor da vossa sanidade. Serão todos recolhidos no mesmo cárcere que acolheu os reclusos mais insuspeitos desde que se inventaram as leis e as liberdades, e tratados como os demais acusados de viver às cegas. Qual alegoria da caverna, qual terapia de grupo, qual elogio da presunção de inocência. O que se expande é o delito da desatenção e o cantar das fórmulas de alta eficácia. As palavras desaparecem como se nos desviássemos para os outros artesãos da linguagem. Contudo, também os pintores, os fotógrafos, os dançarinos e os pássaros prosseguem afastados do trabalho essencial de nos travar no abismo. As fontes de beleza secaram e ninguém está isento de responsabilidades neste mal grande demais para um só réu. A diferença entre os que concordam e discordam, entre criminosos e cúmplices, é a mesma entre um carrasco e um espectador, que observa, revoltado e quieto, segurando uma vela que lhe queimará as mãos. E as palavras.
Acabaram-se as tardes no aroma dos cafés e as noites no brilho azul da televisão. Quem viajou, sonhará com a memória. Quem não viajou livrou-se de sofrer com o que desconhece. Os dias agora serão de marasmo. Começarão com a descrição minuciosa de uma alvenaria de reboco fino, pintalgada de negros húmidos, e terminarão com anotações precisas do percurso do sol no empedrado do chão. Cada dia será a confirmação do que já sabem. O Tempo, que confiavam ser circular, afinal não passa de uma natureza morta (sem o prenúncio da caveira) que não volta atrás senão no mais pequeno alívio, essa sensação de renascer, mas tão somente um simulacro. No acumular do óbvio, das coisas que absorvem para si o mais impávido desinteresse, apodrecerá a virtude. Ao primeiro gemido, – que saudade do rasgo!, desligar-se-ão as luzes da sala. Ao primeiro suplício, – alimentem-me com os versos de um poema!, as lâmpadas brilharão tanto que será impossível manter os olhos abertos. E se, em prantos, alguém ousar, – revolução!, ficará o mundo inteiro a saber que afinal não passávamos todos de uns cobardes à espera que a realidade se montasse sozinha a cada noite.
Perdoem-me a maldade que vos imponho nesta fria descrição de uma detenção inesperada. Esperavam que a literatura vos alargasse a paisagem em mais uma duna branca a investir sobre o mar e acabam engolidos pelo movediço das areias – Kafka, a prosa e o lodo. Considerem-se, então, notificados desta cruel decisão, descriada que será a vossa vida, a partir de agora agrilhoada àquele canto da casa onde atulham os objectos guardados para o esquecimento, empoeirados, inúteis, ridículos, mas também recolhidos, desligados da sua função, fundidos com outras espécies de futilidades, formando novos corpos, focos de estranheza e potencialidade. Como este texto vil, a disfunção das coisas amontoadas e amorfas irá para além do abjecto. No canto esquecido, o desarranjo desenha, entre a deformidade e o desencanto, novas geometrias e fulgores, e habituar-se-ão a demorar a atenção nas coisas feias.
Pois somos todos o resultado das palavras, que podem ser imagens execráveis ou lindas utopias consoante a abertura que lhes reservamos. Só entendendo a capacidade das palavras em fazer dos nossos dias condenações ou emancipações é que poderemos evitar a tristeza que estamos a impor ao mundo. No que resta desta incursão pessimista, desataremos os grilhões que amarram a palavra à palavra, o pincel à tela, o pássaro ao céu, e, por detrás das grades, traçaremos uma viagem nas asas de uma nova ideia. Daremos as mãos na inversão da cidade, nesse lugar sem amanhã, onde nem as injúrias me impedirão de trancar a porta e lhe derreter a chave. A partir de agora, órfãos das nossas próprias desculpas, dos horários a cumprir e da poluição dos olhos, poderemos voltar a escrever imagens juntos.