Número 36

30 de Dezembro de 2023

O DESPLANTE

Confissão de um terrorista

FREDERICO MARTINHO

Importa registar uma ferida no mundo. Uma das feridas do mundo. E importa começar este texto com uma chamada de consciência, suprimir a beleza que se espera da revista, e aceitar que se inicie uma leitura fora da poesia, como todas as coisas devem ser tanto quanto aquilo que são antes de se tornarem poemas. Um corpo deve estar vivo antes de ser cantado de mártir. Uma oliveira deve ser invisível antes de ser um símbolo queimado. Uma paisagem deve ser uma transparência antes de ser uma façanha ou uma cicatriz. Só assim poderei escrever: Palestina. Só assim poderei tornar útil o terror que me chega do inferno, ser uma vida antes da morte e completar um sono nocturno. Hoje, não me peçam para escrever bem. Hoje quero salvar vidas, aqui, ao longe, quero ser mais do que um lírico, quero dar os meus braços, quero que me arranquem os braços e a garganta, que me levem os pés e me dispam de cada músculo até sobrarem só os ossos e me alertarem para a magreza que carrego. Quero que me chamem de fedayin, que me coloquem nas mãos uma flor por abrir, para a entregar a cada um dos condenados. Não, não quero resvalar para a beleza de um lótus branco. Dêem-me sim uma arma, qualquer arma que eu pudesse entregar, cuidadosamente, a cada um dos inocentes. Quero montar com eles uma barricada e resistir nos escombros. Não, não, quero ser eu mesmo um escombro. Que se aninhem em mim os guerrilheiros, aqueles que não tiveram outra opção senão sobreviver e inspirar os pagadores de insónias. Digam que a minha respiração vos assusta. Chamem-me de terrorista, que eu levanto no ar a imagem de um poeta maldito. Se o terrorismo, como o poema, é o pesadelo da narrativa do poder e um sinal de fraqueza imposto, então eu sou um terrorista. Alguém que percebeu que não tem mais nada senão o mal, senão um impulso de ódio ao qual foi reduzido. O terror, como conceito, existe em todo o lado, em cada crença, em cada progenitor. Não depende de uma relação de forças. Já o Terrorista, esse título, é um rótulo, uma terminologia bélica que serve para sobrevoar o político, o diplomático e o próprio sono. Perante os terroristas estamos dispensados das palavras e das leis e, nessa renúncia da linguagem, podemos então decidir quem deve morrer. O terrorista deve morrer! O último elo de ligação entre o pensamento e o mistério, entre nós e o que não compreendemos, nós e os outros. Sempre que morre um terrorista, sempre que retiram mais uma peça de um artefacto impenetrável, julgando desmontá-lo e torná-lo obsoleto, pousando os fragmentos amortalhados na mesa como troféus, aumentam apenas a mancha que se espalha sobre um corpo tão cravejado de metal que formou uma coroa. Sempre que assassinam um terrorista que levava o leite no peito, assassinam também os filhos que, agora, intercalando a fome com a raiva, irão comer as raízes que os suportam: Palestina. Um lugar que visito nas sílabas, envolvendo os lábios e a língua num movimento que começa redondo e se desenrola no horizonte de uma vogal aberta, um clamor distante como os ecos nas montanhas. Uma palavra que colheu os invernos dos jardins, que aprendeu e ensinou, que errou e foi traída nos seus ditares. Uma ideia corrompida como sinónimo de destruição, pontuando um sítio no mundo que se entende como desaparecido. Um lugar de humilhação, subjugação e morte, onde os seus habitantes, os palestinianos, os homens e mulheres que transpiram a liberdade e a gotejam na terra para lhe extrair o sustento, esses palestinianos árabes, os palestinianos judeus, os palestinianos cristãos e os ateus, os palestinianos radicais como as oliveiras em solo seco, os lotófagos, comedores de flores e frutos, cujo crime foi apenas e sempre o da dissemelhança, e que agora habitam no seu fim, encurralados, crendo apenas nos seus túneis e versos que nos fazem chegar antes de morrer. Condeno-me por não conseguir escrever apenas vinte mil mortos. Por me perder na ambição de extrair das palavras a força impossível para parar um genocídio. Apercebo-me de que falhei. Queria conseguir escrever apenas oito mil crianças foram mortas pelos bombardeamentos; repetir esta frase até que as palavras dessem vida aos números; escrever de forma a que ninguém se satisfaça com este texto. Mas eu cheguei até aqui nas costas de um poeta ― um homem acusado de terrorismo. E tendo sido recrutado pelas suas efígies, admitirei sempre ser possível atingir o mundo pela escrita. Foi ele, o perigo que me alertou para a urgência das imagens e que me mostrou os vestígios de justiça que encontramos no terror com que nos querem deitar abaixo. É essa a arma que devemos carregar para não sermos aqueles que se deixam morrer. Ou, numa perspectiva de leitor atento às constantes reescrições dos mapas, sermos aqueles que não se furtam a morrer com os outros, não havendo outra maneira de destruir fronteiras entre os homens. Só assim a paisagem se tornará uma façanha e não uma cicatriz. Para isso é preciso reescrever: Palestina. É preciso pegar na areia, sentir o atrito nas unhas e a goma de pó que se agarra à pele, e depois fechar o punho e contar os grãos com palma da mão. Saberemos, se escutarmos a fricção das pedras minúsculas, que até mesmo o deserto sangra e as crianças morrem.

“Confissão de um terrorista”, poema de Mahmoud Darwich, poeta palestiniano que testemunhou a destruição da sua aldeia, Al Birweh, durante a implantação do Estado de Israel, em 1948.