Número 35

25 de Novembro de 2023

À SOLTA

Cristina

RITA ASSUNÇÃO SERRA

Cristina era uma mulher com um pano ao pescoço que parecia um lenço e um ar muito infeliz. Os seus olhos tinham estampada a expressão duma gaivota abandonada e caminhava na terra como se lhe ditassem recados. Nunca na vida teve um momento de autodeterminação nem ninguém lhe conheceu um reclame ou um queixume. Excepto no dia do seu nascimento, quando desafiou seriamente o que era esperado dela, por nascer numa data bastante inconveniente.

Tudo estava programado para a super-lua. Um universo de babygrows estava à sua espera, alinhados, dobrados e enquadrados nas gavetas numa cromática pastel repleta de tórridos tons aborrecidos, brancos dormentes, cinzas sóbrios e beijes moderados, como se espera duma criança a quem desde cedo se traça o destino e acima de tudo se espera conformidade.

Nasceu de pais contabilistas mas isso nem era o mais importante. Esperava-a o império da contabilidade deixado como um legado do avô Joaquim Aberto “Pica-Números” conhecido famosamente por ter redatado as regras da taxação de imóveis que se refletiu na declaração de impostos sobre o rendimento das pessoas singulares e coletivas (modelos 3 e 22, anexos H7 e Z5 para períodos anteriores a 2015, com direito a uma nota informativa de ajuda ao preenchimento), conseguindo arrecadar uma boa maquia ao estado. À custa de alguns proprietários enfurecidos e muitos empobrecidos, enobreceu a profissão e foi o maior sucesso nos congressos dos fiscalistas desde então. A sua imagem de marca era um bigode que parecia imolar um sorriso, o que simpaticamente compensava a falta do movimento equivalente dos lábios. Ahhhh, a contabilidade, o futuro radiante numérico e preciso, era o que esperava esta menina desde o berço. Quem precisa de nascer num berço de ouro quando pode nascer no berço do calculo de imóveis tributáveis? À Cristina só era preciso nascer e esperava-se que o fizesse.

Infelizmente a biologia e a medicina ainda não estavam tão avançadas quanto a ciência dos números, mas os seus papás tentaram compensar as irregularidades e imprevistos orgânicos orientando, desde a sua concepção, a sua vida com o calendário lunar. É conhecida a relação entre a lua e o nascimento dos bebés desde a antiguidade, e tomando partido do conhecimento cabalístico passado por judeus místicos que circulava no submundo da contabilidade, tudo foi milimetricamente planeado para o dia 15 de Novembro. Era perfeito pois era a conjugação de uma ponte, aproveitando o feriado à quinta-feira e a tolerância de ponto na sexta, conseguiam minimizar o impacto negativo do nascimento nas vidas profissionais de ambos. A pior tragédia seria o nascimento numa quarta, pois era o dia do almoço grátis da empresa para todos os funcionários e a oportunidade rara de falar directamente com o Presidente, bem como e ouvir os seus planos quinquenais entusiastas durante 5 horas, uma para cada ano, detalhando a cada minuto com precisão semanal o ritmo das actividades tendo em conta a existência dos fins de semana, pontes e feriados. Era o metrónomo humano. Circulava mesmo o boato de que negociava inclusivamente as eventuais greves com os sindicatos e associações de trabalhadores, especialmente os transportes. A sua aura era única, emanando uma fuligem celestial característica só adquirida por aqueles que passam as suas vidas nos registos.

Para evitarem esta tragédia, os papás da Cristina viram-se obrigados a entregar o seu destino nas mãos da lua, conhecida entregadora de bebés, confiando que uma super-lua não iria desapontá-los.

Mas a Cristina claramente não leu o memorando in-útero, veio a super-lua e ela esqueceu-se de nascer. Ficou no quentinho enroscada a chuchar no cordão umbilical sem pressas, divertida com as bolhas de líquido amniótico e as luzes difusas avermelhadas que lhe beijavam as pálpebras.

Os pais preocupadíssimos foram ao médico que espreitou com o seu ecoscópio e ficou lívido de susto.

— O que foi, doutor? Perguntaram assustados.

— Temos que esperar pacientemente que a natureza siga o seu curso neste caso, falou com voz gravosa. É que a Cristina está de rabo para a lua.

— O que significa isso? Perguntaram os pais.

— Significa que está alinhada com o fuso horário dos antípodas.

— Ohhhhhh, desgraça!

— Tentem ver o lado positivo, dizia o médico. Às vezes, a natureza escreve direito por linhas tortas. Se um dia for viver para a Nova Zelândia, provavelmente nascerá num feriado e poderá vir a casa no seu aniversário, aproveitando as tarifas mais baixas se planeando os voos com antecedência.

No entanto, a Cristina não quis aproveitar esta oportunidade. Nasceu tranquilamente num hospital que seria fechado meses mais tarde por não conseguir pagar os impostos derivados da tributação de imóveis e dedicou-se ao nicho dos benefícios fiscais para instituição não lucrativas sem personalidade jurídica, nunca mais confiando nos caprichos da lua.

15-11-2016

Alfa a caminho de Bruxelas



Ilustração de Mari Momo