Li a notícia no The Washington Post. Uma escola no Texas despediu uma professora por pedir aos alunos que lessem uma versão ilustrada de O Diário de Anne Frank (Anne Frank’s Diary: The Graphic Adaptation). A edição, adaptada por Ari Folman (filho de polacos sobreviventes do Holocausto) e ilustrada por David Polonsky, foi aclamada pelo New York Times Book Review como sendo “tão envolvente, que é fácil imaginá-la a substituir o Diário nas salas de aula e entre leitores mais jovens”. O livro — autorizado pela Anne Frank Fonds, que gere os direitos da autora — estava a ser estudado por alunos do oitavo ano, com a mesma idade que Anne tinha quando o escreveu. A escola acusou a professora de ter selecionado excertos “pornográficos” para trabalhar. Os pais parecem concordar com a decisão e já há várias escolas a optar por versões truncadas da obra. Outras retiraram o livro do currículo.
A notícia fez-me voltar a folhear as páginas da polémica, escritas em março de 1944. Encontrei-as no exemplar que a minha Mãe me ofereceu, o mesmo que eu ofereci há uns meses à minha filha de 12 anos. Gostava de perguntar a Peter se sabe como as raparigas são lá em baixo. Acho que os rapazes não são tão complicados (…) a única coisa que se vê de frente são pêlos. Entre as pernas tem duas coisas macias, almofadadas, também cobertas de pêlos, que se fecham quando está de pé, pelo que não se consegue ver o interior. Na parte de cima, entre os lábios exteriores, há uma prega de pele que, pensando melhor, parece uma espécie de borbulha. Isso é o clítoris. Depois vêm os lábios interiores, que também estão fechados numa espécie de prega. Quando se abrem, consegue-se ver um pequeno montículo carnudo, do tamanho da cabeça do meu polegar. A parte de cima tem dois pequenos orifícios, que é por onde sai a urina. A parte de baixo parece apenas pele, e, no entanto, é aí que fica a vagina. Mal se consegue encontrá-la, porque as pregas de pele ocultam a abertura. O orifício é tão pequeno que mal consigo imaginar como é que um homem pode lá entrar, e muito menos como é que um bebé pode sair. Já é bastante difícil tentar introduzir o dedo indicador. E pronto, é só isto e, contudo, desempenha um papel muito importante. Tua, Anne M. Frank. Uma breve descrição dos órgãos genitais femininos. E pronto, é só isto. A normalidade absoluta: naïf e inocente, perscrutador e curioso, iniciático e primevo, como tudo — o corpo, o mundo, a vida, o Eu e o Outro — aos 13 anos.
As primeiras edições não estão completas. O pai de Anne, Otto Frank, selecionou criteriosamente o que incluir e optou por não publicar estas páginas. Em 1947 não era comum escrever abertamente sobre sexo, muito menos num livro para jovens, escrito por uma jovem. Mais tarde, Otto acabaria por publicar o Diário na íntegra, por achar que estas confissões eram tão importantes como as do esconderijo — e a prova de que Anne, mesmo em clausura, não deixava de ser uma adolescente a despertar para o mundo e, naturalmente, também, para a sexualidade. Foi generoso: ao perceber o impacto que o Diário tinha nos jovens da idade da filha, percebeu quão importantes aquelas confissões seriam para quem se começa a descobrir. Definimo-nos, também, em relação ao Outro, em espelho. E quando estamos à procura de quem somos, as referências são uma âncora — também na intimidade, nas dúvidas, no que ainda não sabemos dizer. Anne tinha 13 anos e escrevia sem reservas sobre as suas angústias, medos e sonhos. Escrevia à “querida Kitty”, amiga imaginária, de papel, a quem se confessava como a uma melhor amiga. Espero poder confiar-te tudo, como nunca pude confiar em ninguém, e espero que venhas a ser uma grande fonte de conforto e apoio, desejou, na primeira vez que escreveu no Diário.
A vida de Anne Frank mudou quando os nazis invadiram os Países Baixos, obrigando-a a viver escondida, com a família, num anexo. É mais ou menos por esta altura que começa a escrever o Diário, publicado pelo pai da autora para mostrar ao mundo, através da escrita da filha, o que foram aqueles dois anos de reclusão, durante os quais a adolescente — símbolo da II Guerra Mundial — viveu isolada, para tentar escapar aos campos de concentração. Em agosto de 1944, os habitantes do esconderijo foram descobertos e presos. Anne morreu de tifo, no campo de Bergen-Belsen, quando faltavam apenas dois meses para o fim da guerra. Tinha 16 anos. As páginas que escreveu naquele anexo, entre o pavor e os sonhos de liberdade, são um ensinamento universal e intemporal sobre a resistência do espírito humano, mesmo quando mergulhado na mais profunda escuridão. Entre o terror do que é descrito, há uma adolescente que tem nas discussões com a Mãe, no gosto pela leitura e pela escrita, na sua paixão por Peter (com quem partilha o anexo) e no desejo que essa paixão desperta, o que resta da vida que lhe foi roubada. É esse resquício de humanidade que a salva, uma fenda por onde entra alguma luz, num esconderijo quase sempre às escuras.
Este verão, levei as minhas filhas a ver a peça O Diário de Anne Frank, produzida pelo Teatro da Trindade. Outras famílias fizeram o mesmo e, na sala, havia muitas crianças. No palco, contava-se o inimaginável: a vida presa num sótão. Os passos cautelosos, os movimentos assustados, as conversas murmuradas e silenciadas com medo do eco, dos barulhos delatores. Na assistência, nem um som. Numa sala cheia de crianças não se ouvia barulho algum. Foi a resposta do público, que apesar de muito jovem, fez o silêncio que se impõe perante um palco à meia-luz. No cenário, penumbra; na plateia, silêncio absoluto. Ouvi as palavras de Anne, quando a noite a obrigava a fechar o diário: estou aqui sentada, muito confortável, no escritório da frente, a espreitar por uma fenda nas cortinas pesadas. Está a anoitecer, mas há luz suficiente para escrever. E, então, lembrei-me da notícia que li no The Washigton Post, um jornal impresso com um slogan sob o título: Democracy dies in darkness. Está a anoitecer, mas ainda há luz suficiente para escrever e para ler O Diário de Anne Frank. Inteiro. Com toda a sua sombra, com toda a sua luz.