Número 15

27 de Novembro de 2021

CAIXA ALTA

Elsa Ligeiro, a mulher-poema que vive através da palavra

ANDREIA M. SILVA

Elsa Ligeiro


A poesia. Sempre ela a habitar-lhe os dias. Desde o espanto do primeiro verso, que aconteceu por volta dos 11 anos, com um poema de Sophia. Através dela viria a perceber que “a poesia espera, pacientemente, pela capacidade de entendermos o tempo onde ela existe”. Elsa Ligeiro não se demorou nessa espera. E os livros acabariam por traçar-lhe o destino.

Em 1987, antes de se lançar no mundo das editoras (sobretudo de poesia), foi gráfica no Jornal do Fundão. Ali, descobriu as crónicas de Carlos Drummond de Andrade e de José Cardoso Pires e viu, pela primeira vez, “um homem alto, sisudo, todo vestido de branco”: o poeta Eugénio de Andrade, que viria a admirar pela escrita que dedica à (também sua) Beira Baixa – Elsa Ligeiro nasceu em Alcains.

Na gráfica ganhou gosto pelo cheiro da tinta, pelo som das rotativas, pelo toque do papel. E aí soube exatamente o que queria fazer.

Com a “ideia fixa” de ser editora e sem escola que ensinasse profissionalmente o ofício, voltou-se para as editoras de Coimbra.

“Fui conhecer as editoras que existiam – a Coimbra Editora e a Livraria Almedina –, mas os enormíssimos tomos de direito penal, administrativo, ou o código civil não me convenceram”, conta.

Escolheu a Cooperativa Fora do Texto (herdeira da editora Centelha), que editava livros de poesia. Conheceu Alfredo Soveral Martins, amigo de José Afonso, que o acompanhava nas visitas ao bairro operário da Relvinha, e onde, “entre duas canções, acolhiam as palavras de queixume dos trabalhadores”.

“Soveral Martins foi quem mais me ensinou a arte solidária nesses anos (já com a revolução em declínio) com estórias empolgantes dos anos 60 e 70; mas também devo algumas das estórias ao socialista António Arnaut e a um homem delicado e culto: Júlio Henriques, um extraordinário tradutor e um anarquista consciente”, lembra.

Mas a verdadeira Escola de Coimbra no mundo dos livros seria a Livraria Quarteto. E foi ali que Elsa conseguiu juntar alguns escudos com que viria criar a A Mar Arte, em 1993. Sempre com o propósito de editar livros de poesia. A editora deu corpo à primeira Clepsidra, de Camilo Pessanha, com introdução do poeta Eugénio de Andrade, em 1994. Editou Jorge Melícias, Cidália Fachada, José Guardado Moreira, Diogo Cabrita (este com a colaboração do músico Paulo Furtado) e os dois primeiros livros de um jovem autor de Vila de Conde, que assinava com o pseudónimo de Valter Hugo Mãe. O projeto acabaria em 1998.

Foi também na Editora da Livraria Quarteto que convenceu Agustina Bessa-Luís (por telefone) a apresentar o livro “Sangue”, de Camilo Castelo Branco, no Porto, em maio de 1999.

“Eu não a conhecia pessoalmente; e marcámos o Encontro no Café Majestic, onde lanchámos, antes da sessão na Livraria Lello. Depois do fracasso e do desalento da perda de uma editora em que tinha apostado tudo o que tinha e sabia (dinheiro e todo o meu tempo) preparava-me para a normalização de uma vida confortável”, diz. Agustina Bessa-Luís, renovou-lhe a inspiração.

Em 27 de Setembro desse ano de 1999 nasceria a Alma Azul que, além de editora, é produtora de atividades culturais, dedicada sobretudo à poesia e reedição de grandes obras literárias portuguesas.

“Entendo que a promoção e a divulgação da leitura passam por editar os livros certos, levá-los aos sítios certos e encontrar os leitores adequados”, diz Elsa, a quem já chamaram mulher-poema. Ela, que festeja com alegria o aparecimento de novos autores e recorda outros. Para manter viva a infatigável arte da escrita. E da poesia. Sempre ela a habitar-lhe os dias.

Lembra-se do primeiro poema que leu? Quem lhe incutiu o gosto pela poesia?

Lembro-me bem do primeiro poema; decorei outros (como o do Miguel Torga: “Sei um ninho”, na escola primária); mas tenho a consciência plena da Poesia ter chegado à minha vida através de um Antologia de Sophia de Mello Breyner Andresen, numa edição da Moraes Editora; e de um poema particular que causou uma enorme revolução nos 11 ou 12 anos que teria na altura. Chama-se Praia (Coral 1950) e é muito descritivo:

“Os pinheiros gemem quando passa o vento
O sol bate no chão e as pedras ardem.
Longe caminham os deuses fantásticos do mar
Brancos de sal e brilhantes como peixes.
Pássaros selvagens de repente,
Atirados contra a luz como pedradas,
Sobem e morrem no céu verticalmente
E o seu corpo é tomado nos espaços.
As ondas marram quebrando contra a luz.
A sua fronte ornada de colunas.
E uma antiquíssima nostalgia de ser mastro
Baloiça nos pinheiros.”

Estes dois últimos versos ficaram gravados na minha memória para sempre. Creio que foi com eles que percebi a densidade da poesia.


Decidiu investir o seu tempo na poesia, depois de uma aventura pelos jornais? À primeira vista são mundos absolutamente opostos. Foi isso que a fez desistir do jornalismo?

Gostei muito de trabalhar nos jornais. E durante muito tempo achei que era a última profissão romântica do século XX. Com o tempo apercebi-me que foi uma atividade (um quarto poder) absorvida completamente pelo poder executivo; e hoje, com honrosas exceções, jornalismo resume-se à repetição da informação facilitada pelos gabinetes de comunicação que o poder nacional ou autárquico criaram. Compreendo a situação: sem leitores é muito difícil a sobrevivência económica de um meio de comunicação social; mas um jornalismo sem independência para publicar e questionar a verdade dos factos o que é? Continua a ser jornalismo?

Mas nunca fui jornalista; trabalhei em jornais nos departamentos gráficos. A edição de livros e revistas literárias não é muito diferente do jornalismo.


Que idade tinha quando chegou a Coimbra com “a ideia fixa de ser editora”?

Trinta anos. Nasci em Julho de 1961; e cheguei a Coimbra no início de Setembro de 1991.


Alfredo Soveral Martins teve um papel importante nessa incursão pelo mundo das editoras?

Com Soveral Martins tive sobretudo uma relação de amizade e camaradagem. Ele era um ativista da esquerda radical, com um passado riquíssimo de histórias, com o José Afonso; o Bairro Operário da Relvinha… Ele gostava de contar essas vivências e eu era uma ouvinte entusiasmada. Devo-lhe em grande parte o conhecimento de uma Coimbra que me teria passado ao lado, nesses anos: o poder da Faculdade de Direito (que acho que ainda se mantém) em Coimbra, apesar da Medicina; a experiência de uma cooperativa dirigida por burgueses; e a riqueza de anos transformadores do livro em Portugal. O fim da [distribuidora] CDL (Central Distribuidora Livreira) anunciava já a decadência das distribuidoras de livros. A grande experiência vivida na Fora do Texto foi, sem dúvida, o meu batismo na participação em Feiras do Livro. Em relação à minha aprendizagem estruturada do mundo do livro – edição, distribuição e leitores -, só aconteceu quando fui trabalhar para a Livraria Quarteto. É a minha verdadeira Escola de Coimbra, no mundo dos livros.


Guarda boas memórias de Agustina Bessa Luís. Onde a conheceu e que papel teve na criação da Alma Azul?

A Agustina Bessa-Luís foi uma iluminação que surgiu na minha vida quando estava a curar as feridas da perda da Editora A Mar Arte. Pode parecer excessivo, mas não é. Depois do fracasso e do desalento da perda de uma editora em que tinha apostado tudo o que tinha e sabia (dinheiro e todo o meu tempo) preparava-me para a normalização de uma vida confortável; com o paraíso sempre aberto quando entrasse numa Livraria ou na Biblioteca.

Conhecer a Agustina Bessa-Luís foi a consciência plena do que é um autor. Ela não se limitou a escrever romances, biografias, contos ou crónicas. Para ela escrever foi um acto contínuo, um prazer, um trabalho, uma missão. Creio que um grande escritor deve ter a consciência clara da sua função, como tiveram, por exemplo, Herberto Helder e Agustina.

A Agustina Bessa-Luís que continuo a Ler (e devo confessar que ainda não li toda a sua obra que é, felizmente, muito extensa); é, para mim, muito mais que uma autora genial; é uma companheira de estrada; e é muito reconfortante e estimulante partilhar o universo da Agustina Bessa-Luís através da Leitura. Tê-la conhecido desencadeou o meu interesse pela sua Obra. E isso é que é importante; não o humor e a inteligência pessoal de Agustina, nesse dia 12 de Maio de 1999 que foi inesquecível, mas não tão importante como a sua Obra que me acompanha e acompanhará enquanto me dê prazer de aprender. É um privilégio contar com a companhia da Agustina na descoberta e no entendimento da diversidade do humano.


Conseguirá o livro sobreviver num mundo cada vez mais digitalizado?

O livro já teve muitos suportes. Tal como o conhecemos hoje não é assim tão antigo. A imprensa de Gutenberg veio tornar o livro mais democrático, mais acessível a um grande número de pessoas. O digital alargará provavelmente esse número.

Mas gostava de referir que o que ajudou a massificação do livro foi a literacia. A luta contra o analfabetismo; saber Ler é uma arma extraordinária contra a opressão e o obscurantismo. Pessoalmente, confio na Educação como suporte do ensino da Leitura. Mas atenção, Ler um texto (ou a realidade) é muito mais que ensinar a Ler e a Escrever. Daí a importância da Filosofia, e o seu ensino na Escola; que uma verdadeira cultura literária tem de defender com todos os meios ao seu alcance para que não desapareça do Ensino.


Qual é a memória mais antiga que tem da sua infância?

A minha memória mais antiga é de uma viagem pelo campo com a minha avó materna; ver nascer o sol, numa pequena floresta; foi a imagem iniciática do belo ancestral que ainda hoje me acompanha.


Alguma vez escreveu um poema?

Sim, já escrevi mais do que um poema, mas são todos destruídos pelo extremo exercício da beleza dos grandes poetas.


Agustina Bessa-Luís escreveu que a arte é o próprio alento humano para lá da fadiga de todas as perguntas sem solução.

A Poesia é um espaço de exercício para a linguagem humana. De uma procura para definir com exatidão a estranheza, o horror e a beleza de se estar vivo; contra todas as possibilidades que se nos apresentam. Definir alguns deslumbramentos de que somos capazes (como amar e nos deixarmos amar), são alguns indícios apenas da perceção e da razão da poesia.

Mas talvez tivesse sido mais fácil repetir o que Santo Agostinho respondeu quando lhe perguntaram o que era O Tempo.


E para si, o que é, afinal, a poesia?

Ao contrário dos que acham que a Poesia não serve para nada, há na minha vida um poema adequado para cada ocasião. Os poemas são um bom suporte para o diálogo e o contraditório. Os que eu utilizo com mais frequência: Ítaca, de Constantino Kavafis; Camões e a Tença, de Sophia Mello Breyner Andresen e o “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”, de Luís de Camões.

Se tivesse que apontar só um, escolhia “Uma pequenina luz…”, do Jorge de Sena.

“Uma pequenina luz bruxuleante
Não na distância brilhando no extremo da estrada
Aqui no meio de nós e a multidão em volta
Une toute petite lumière
Just a little light
Una picolla, em todas as línguas do mundo

Uma pequena luz bruxuleante
Brilhando incerta mas brilhando aqui no meio de nós
Entre o bafo quente da multidão
A ventania dos cerros e a brisa dos mares
E o sopro azedo dos que a não vêem
Só a adivinham e raivosamente assopram

Uma pequena luz, que vacila exacta
Que bruxuleia firme, que não ilumina, apenas brilha
Chamaram-lhe voz ouviram-na, e é muda
Muda como a exactidão, como a firmeza, como a justiça
Brilhando indeflectível
Silenciosa não crepita
Não consome não custa dinheiro
Não é ela que custa dinheiro
Não aquece também os que de frio se juntam
Não ilumina também os rostos que se curvam
Apenas brilha, bruxuleia ondeia
Indefectível, próxima dourada

Tudo é incerto, ou falso, ou violento: Brilha
Tudo é terror, vaidade, orgulho, teimosia: Brilha
Tudo é pensamento, realidade, sensação, saber: Brilha
Desde sempre, ou desde nunca, para sempre ou não: Brilha

Uma pequenina luz bruxuleante e muda
Como a exactidão como a firmeza, como a justiça
Apenas como elas
Mas brilha
Não na distância. Aqui
No meio de nós
Brilha.”




Elsa – Olhai uma Flor