a rat became the unit of currency.
Zbigniew Herbert[1] em Cosmopolis (2012), David Cronenberg
Na política da quinta dos animais de George Orwell,[2] há uma figura negligenciada: a gata.
O nosso ser ronronante parece longe do gato anarco-sindicalista de Ralph Chaplin,[3] colorido a raiva vermelha e convicções a preto e branco (exceto no momento da vingança contra os humanos). É uma gata sensual que parece ter claramente uma agenda que não faz questão de divulgar:
the behaviour of the cat was somewhat peculiar. It was soon noticed that when there was work to be done the cat could never be found. She would vanish for hours on end, and then reappear at meal−times, or in the evening after work was over, as though nothing had happened. But she always made such excellent excuses, and purred so affectionately, that it was impossible not to believe in her good intentions. George Orwell, Animal Farm
Apesar de não se envolver no trabalho da quinta, a gata difere de Mollie, a égua movida por cubinhos de açúcar. O que importa para a gata?
Vamos procurar responder a esta pergunta com outra pergunta: e se um rato se tornasse na moeda? [4]
A pergunta parece absurda. Peço paciência e coragem para mergulhar na ideia.
As moedas físicas ocupam espaço. São a piscina do Tio Patinhas e os depósitos dos anões de Tolkien.
Antes das moedas havia cacau, trigo, outros bens armazenados e distribuídos por quem tinha acesso às mesas.
Os bens apodrecem. Têm de ser preservados de atacantes. De ratos.
Comrades,” he said, “here is a point that must be settled. The wild creatures, such as rats and rabbits — are they our friends or our enemies? Let us put it to the vote. I propose this question to the meeting: Are rats comrades?
The vote was taken at once, and it was agreed by an overwhelming majority that rats were comrades. There were only four dissentients, the three dogs and the cat, who was afterwards discovered to have voted on both sides. George Orwell, Animal Farm
Dizem-nos que os gatos se aproximaram de nós pelos ratos.
Os ratos são a sua moeda.
Mas não faz muito sentido guardar ratos.
Apodrecem e cheiram mal.
É preferível manter boas relações com o dono do celeiro, seja ele quem for.
A gata não tem a mesma moeda do resto da quinta.
A gata tem as suas próprias regras.
E uma das regras é não estar dependente de ratos.
The cat joined the Re−education Committee and was very active in it for some days. She was seen one day sitting on a roof and talking to some sparrows who were just out of her reach. She was telling them that all animals were now comrades and that any sparrow who chose could come and perch on her paw; but the sparrows kept their distance. George Orwell, Animal Farm
A gata é um ser com recursos.
Assim o têm revelado os estudos de gatos ferais e semi-ferais, com quem aprendo muito.[5]
Vejo-os das janelas da minha casa. Eu e as minhas duas gatas.
Aprendo a vida felina e a sua política.
O tempo é crucial.
No início, parecia-nos que a ação era dominada pelo gato mau.
Um gato possante e feroz que atacava indistintamente machos e fêmeas.
Parecia um boxeur bully.
Mas com o tempo, percebemos outras coisas.
Percebemos que o gato mau tinha uma namorada e uma amante.
A namorada era a Pandora, uma tricolor encantadora.
Ele guardava-a constantemente a seguir ao cio.
Achávamos nós que era o macho alfa.
Até percebermos que não era.
Durante o sexo, os gatos cancelam as regras habituais.
Víamos a Pandora com outros gatos.
Víamos o gato mau com outras gatas.
O sexo era um ato de loucura e política.
O gato mau e a avó gata, ambos com mais de 17 anos, tinham sexo em publico para selar compromissos.
Aos poucos fomos percebendo de que compromissos se tratavam.
Da colónia.
As colónias de gatos semi-ferais são matriarcais.
A avó gata era a matriarca.
As suas filhas tinham papeis diferenciados.
A Pandora era uma generala e educadora, que ensinava às crianças o território.
Quem assumia as funções reprodutivas era a irmã, a Anita.
Quem assumia funções de parentalidade era o gato mau.
O gato mau era um capanga da colónia, sendo que em emergência, a Pandora e todas elas atuavam em clã.
O gato mau era um soldado apaixonado a fazer pela vida.
Cumpria religiosamente as rotinas de zelar pelo território.
Fora a área da casa da colónia, dominada pela matriarca e pela sua humana, tinham o meu terreno (que era delas antes de eu vir para cá viver).
O meu terreno é um território de caça, água e de lugares de repouso, inclusive para pernoitar.
Gerem este território com rondas.
Todos os dias os gatos machos e fêmeas fazem rondas.
Toleram a presença de outros gatos em certas horas do dia, mas não noutras.
No sexo cancelam-se as regras anteriores e é permitida a entrada a machos e fêmeas errantes.
Os gatos da colónia procuram trazer para cá as namoradas, mas sem sucesso.
A namorada do gato mau ficou amantizada, com horas específicas de visita, após todas as outras se terem ido deitar.
As minhas gatas observam tudo da janela, com atenção.
Para já são reféns dum desejo infantil de lhes adiar a mortalidade.
Quais serão os seus ratos, é a pergunta que se impera.
Sem compreender a moeda é impossível conhecer a política.
[1] https://www.nybooks.com/articles/1983/08/18/report-from-a-besieged-city/
[2] George Orwell (1945). Animal Farm.
[3] https://en.wikipedia.org/wiki/Ralph_Chaplin
[4] https://www.youtube.com/watch?v=pyaA3rWWHHs
[5] https://feralatlas.supdigital.org/poster/barn-cat-colonies-in-americas-dairyland-empty-the-landscape