Levanta-se a manhã com o vento, enquanto dormes. Que respiração é esta que dobra as árvores? Que força é esta que sobrevoa a montanha, vinda de Oriente, e embate contra os olhos, forçando o semblante. Estes olhos que sofrem das monções. Deltas que entregam a doçura da água nas marés, como quem sacrifica uma criança aos deuses, salgando futuros atrás de futuros, nas leiras estéreis do mar. Mas olhos, cansados, que também se esquecem da sua natureza sofredora, perante a beleza das paisagens, e estancam em fotografias os óleos escorrentes de pinturas roubadas a uma pequena alegria que germina. Tudo isto, porque o vento esbarra na fronte a desconforto e trabalha contra a lágrima protectora, obrigando a um esforço supraconsciente do olhar que sofre do que não consegue ver ― sofre da invisibilidade de um fenómeno para o qual não foi preparado. O que se vê é apenas o vestígio desse movimento que varre a superfície da Terra e que balança as copas das árvores em ondas reconhecíveis apenas nas memórias de passados marítimos.
O vento é a prova da existência do ar e da sua força. A prova de que existe uma matéria que inunda o céu até este deixar de ser céu. Um fluxo. Um oceano onde os vivos submergem e existem em continuidade. Um lugar onde penetramos num continuum fluido, um rio suspenso entre todas as coisas, que corre entre e corre em. Um sopro, ou um soro, criado pelas plantas ― a atmosfera. Um feito simultaneamente grandioso e dissimulado numa cúpula sob a qual erram todos os seres do mundo. Estou perante o vale, inspiro a montanha. Estou perante os pássaros, aspiro as asas. Estou perante os olhos, respiro o cabelo. Tudo é impregnado pelo sopro: o vento, a voz, a respiração. Tudo circula em vibração. Inicia-se na camada fina do filme lacrimal de um olho e termina no abismo líquido de uma ferida aberta por mais uma explosão.
Nesta imagem que nasce em mim, que cruza o horizonte por detrás das montanhas e se prolonga até onde consigo vestir a pele do outro, reside o alcance da minha respiração: um movimento aéreo (um fluxo) que se estende de dentro para fora, e vice-versa. Algo que inspirei para expirar. Que teceu uma linha para lá de mim, voando para onde a imaginação o permita. Neste fundo oxigenado onde submergimos, não existem barreiras para a contaminação ― chegamos onde chega a nossa respiração.1 Penso nos que morrem sem ter de morrer, nos que escolheram este vale para viver, em ti, que dormes ao meu lado. Todos vós sobrevivem do mesmo alimento que eu: este ar que a floresta sua e a nuvem sombreia. Somos todos seres-para-além-de-nós, migrantes em ideias e formas para lá do que conseguimos ver.
Os olhos estão, finalmente, libertos da visão. Podemos fechá-los com a certeza de que, ao enchermos o peito de ar, pertencemos ao mundo. (Tu pertences ao mundo enquanto dormes.) Contemplamos o mundo aspirando-o com as suas formas, cheiros e cores. E, alheados da ânsia de ver, podemos, por fim, devorar os olhos um do outro, mastigá-los eternamente, para que, cegos, estejamos aptos para reclamar outras imagens de nós. Imagens onde existíssemos debruçados no vale como as aldeias e os lagartos, preparados para a vertigem de todas as cascatas. Onde tu, mulher de mármore, me abraçasses com os teus braços em flor e me acordasses, repetidamente, para uma nova manhã, submersa ou suspensa, conforme o balanceamento das coisas que nos rodeiam.
Enquanto sopras essa respiração de sonho, aprendi que o vento é a forma de um movimento criado numa matéria que as plantas produziram durante milhões de anos. Aprendi, nesta manhã fustigada pelo abrir das portas mal fechadas e pelo pátio cheio de folhas secas, a ensaiar o sono no exterior do quarto, para que as palavras se misturem no ar. Aprendi a inclinar-me no poço aberto dos olhos e a encontrar mais do que a visão. Sim, neles descemos a dois infinitos de azul-submerso, dois apelos de Oriente, duas rajadas no céu.
E o mundo a assobiar lá fora, ou seja, a respirar connosco.
1 Emanuele Coccia em A Vida das Plantas.