Há uns anos valentes li numa antologia da obra de Wenceslau de Morais um texto que a certa altura referia um soldado da Manchúria que, caído no campo de batalha, escrevia qualquer coisa, molhando o indicador no sangue das suas feridas. Por mais que volte a essa antologia, e tenho-a aqui comigo, não consigo encontrar essa referência. Terei sonhado? O certo é que nunca mais me saiu da cabeça. O que escrevia o soldado com o sangue das próprias feridas? E porquê? Está a escrever o conteúdo do seu interior porque a tinta é feita do seu interior, logo, palavras feitas de interior expressam o interior. Isto era eu sedento de metáforas. O caminho directo para a substância das coisas, sem subterfúgios, sem intermediários, em última análise sem linguagem, porque aqui as palavras não referem, pelo contrário, são referidas, são palavras de sangue feitas de sangue escritas pelos dedos do detentor do sangue, cujo interior se está a esvair. O seu lado de dentro está a entornar-se. Ele está furado. E enquanto pode, ou seja, enquanto ainda não perdeu tudo o que enche a sua forma, dá uma nova forma ao seu interior no exterior. Ele aproveita isso, está a transformar o seu lado de dentro líquido numa coisa sólida que pode ser lida e compreendida por outros, e basta molhar os dedos no sangue e escrever as palavras, transformar o corpo no poema, no único poema possível. No poema que nunca poderia ter sido escrito noutras circunstâncias. O poema da circunstância, mas repare-se, a circunstância decisiva.
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Em 1895, o professor de física Wilhelm Conrad Röntgen da Universidade de Würzburg estava a fazer experiências com gases a passar dentro de um tubo e descobriu quase por acidente que era possível fotografar objectos opacos à transparência. Então resolveu pedir à sua mulher Anna que colocasse a sua mão entre um dispositivo que emitia radiações e o papel fotográfico. Saiu assim, em 22 de Dezembro de 1895 a primeira radiografia. O interior da mão de Anna.
Esta fotografia foi reproduzida milhares de vezes, serviu de legenda a múltiplas conferências, artigos, teses, discussões académicas. Um desses artigos explicava que os raios x eram como que “lápis invisíveis”, capazes de registar não só as acções e os pensamentos das pessoas, mas também os seus desejos mais profundos, aqueles que nem sequer têm coragem para pôr em pensamento.
Com o sucesso da sua descoberta, Röntgen não mais parou de viajar, de universidade em universidade, partilhando com os pares as suas novas descobertas e teorias. Anna, em casa, olhava para a fotografia e tentava desvendar alguma coisa sobre si própria. Um dia estava a lavar as mãos e lembrou-se daquela cena em que Lady Macbeth também lavava as mãos, mas não conseguia tirar o sangue. Mas no seu caso era diferente, olhava para a água a escorrer entre os dedos e só conseguia ver manchas de ossos.
Mas, por mais que os cientistas se esforçassem em olhar de perto, a única coisa que conseguiram ver, ao espreitar para cada vez mais interiores de seres humanos, era que todos tinham mais ou menos as mesmas coisas lá dentro, coisas essas, aliás, que já sabiam que tinham, pois há muito se abriam em nome da ciência, cadáveres. Quando bocados de interior apresentavam aspectos fora do normal através da transparência era sinal de patologia. Mas isso via-se, não porque o interior revelasse algo em si, mas porque, comparado com outros interiores, alguma coisa devia estar mal, ora porque estava fora do sítio, ora porque estava partido, ou porque apresentava manchas esquisitas que outras amostras não mostravam. Os bocados de interior vistos à luz da radiação eram tão opacos como os exteriores à vista nua.
O interior em si era afinal constituído por partes de fora de outros interiores que, se perscrutados, eram também partes de fora de outras partes de fora por dentro. Afinal o que é o mundo, senão o que está do lado de dentro de uma pessoa, tal como do lado de fora? Mas então somos atravessados pelo mundo, comos se fossemos espectros, ou janelas abertas pela ventania?
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Há uma pintura do americano Thomas Eakins, de 1875, a clínica de Gross, que representa uma aula de anatomia. No centro da acção está o professor Gross, rodeado de assistentes, a meio de uma intervenção cirúrgica pública. Vê-se uma fratura exposta de apenas uma parte do corpo, talvez uma coxa de alguém. O resto do paciente não se vê, está tapado por um lençol sujo de sangue. Gross fala aos alunos ao mesmo tempo que opera e mostra o que está a operar. Em torno do anfiteatro, veem-se os alunos, um pouco na penumbra a ouvir o professor e a tirar apontamentos nos cadernos. Gross está a mostrar de que é feito o interior daquela perna, e como se cura, como se escreve nela. Aliás, é isso que salta à vista nesta pintura. Os alunos, o professor e os seus assistentes, estão todos a fazer a mesma coisa: a escrever. Uns tiram apontamentos com tinta permanente, outros seguram no bisturi na mesma maneira com que se segura uma caneta. Usam outro género de tinta permanente, o sangue.
O soldado da Manchúria não tinha caneta, escrevia com os dedos, e escrevia mesmo palavras com os dedos. Afinal, escrevia-as com sangue por uma razão simples. Não tinha mais nada que lhe pudesse valer. E talvez porque, perante a morte iminente – é muito perigoso romper o corpo, entornar o sangue – talvez não haja muito mais a fazer do que escrever. Ou conversar, mas não havia ninguém ali ao pé. Por isso só restava escrever, mais nada.