Corpo de Deus

1 de Julho de 2023

Este é o nosso corpo

ALICE W.

Dizia Bernardo Soares que a alma das coisas é o ambiente, querendo demonstrar que é o exterior que confere expressão à matéria. Compreende-se, depois disto, a analogia entre o sentido da vida e o sentir-se bicho levado num cesto entre estações suburbanas, atento ao movimento do braço que o transporta. Sublinho: apenas um braço de um qualquer corpo, conduzindo a existência. O rosto não importa. A cor da pele importará menos ainda, as marcas, os sinais, as veias mais ou menos salientes, nada disto tem qualquer relevância –  uma imagem apenas que representa a síntese entre matéria e invisibilidade, esse quid, esse éter, essa vontade anímica que define cada um dentro de si.

(Abro, aqui, um primeiro parêntesis: aproprio-me da premissa. Observo o ambiente que me rodeia, o lugar das coisas, o meu lugar, sentada, a escrever, a pensar no que escrevo e no que me dói no corpo. Neste momento, a expressão que me define encontrar-se-á num hiato qualquer que há de justificar que se juntem, nesta superfície a que encosto os cotovelos, o envelope azul, a memória do propofol, a escala de Boston, a lesão subepitelial, as recomendações de não tomar decisões importantes, nem assumir compromissos legais ou profissionais nas próximas horas, sobretudo não executar tarefas potencialmente perigosas como cozinhar, e, ainda, neste mesmo espaço, neste mesmo local, como um néon na parte de trás dos olhos, o Banho, de Gary Snyder, repetindo este é o nosso corpo, recursivamente até ao limite do cansaço, este é o nosso corpo.)

Retomo o fio e sigo um pouco mais o pensamento de Soares.

 (Novo parêntesis de tom ligeiramente confessional, espécie de questão prévia que importa esclarecer, aviso para admitir que me sinto às vezes coisa alheia, paradoxalmente desprovida de corpo, um espaço entre as palavras de uns para os outros, como o volante que gira entre diferentes jogadores, mesmo sem propofol.)

Inclino-me, então, quebrando o desassossego e atento no começo da espiral da escada. Não desço, por ora. O próximo patamar está fechado, será preciso agir sobre a matéria, falta-me a palavra, esse milagre. Dreyer mostrou-nos isto com o seu Johannes, criatura instalada entre o mundo do invisível e a realidade, fixando a vida na força do que é dito. A história de Inger encerra com uma nota de expectativa de recomeço, com a ideia de acertar o relógio, um reset da própria existência, cuja medida essencial é sem dúvida indissociável do tempo.

(Novo parêntesis iluminado: medirmo-nos é conhecermo-nos. Dito de outra forma, aceitar a finitude como essência da existência humana é fundamental para sabermos o que somos ou, pelo menos, acedermos a um varandim sobre a paisagem em que nos vemos agir e representar o papel que escolhemos ou que decidimos receber.)

O tempo e a sua erosão configuram-nos como edifícios em mutação por força da poalha fina do vento que oscila sob brisa ou nortada. A beleza das coisas está em saber que o sol que as ilumina lhes é exterior e há de ter o seu ocaso, queiramos ou não. O segredo, digo eu, será não deixar secar o poço ou extinguir o lume (e entra neste texto uma nova imagem cinematográfica, desta vez retirada a Béla Tarr e à visão, espécie de miragem acerca daquilo que permite reconhecer o humano, inscrita entre a ventania e o silêncio, entre o peso da impossibilidade e o peso da escuridão).

Soares lia como quem passava, eu parafraseio-o como quem navega entre pensamentos desalinhados e todos sabemos o quão imprecisa se afigura esta tarefa de seguir um rumo entre marés. De certa forma, somos todos argonautas em busca do velo de ouro, temerários, feitos de uma composição indistinta, misto de heroísmo e feitiço, barro e perfume, fogo e lama, (arga)massa que permite dar forma ao corpo.

(Novo e pequeno parêntesis de declarado fascínio relativamente à mitológica princesa da Cólquida, mas essa será outra história, outro corpo, com perdão pela redundância.)

Fito esta superfície em que escrevo, apoio ainda os cotovelos, aliás, apoio os pulsos, pequena parte da matéria, e continuo sem descobrir o sentido das coisas que preenchem o cenário que condiciona o que me define (seja lá o que isso for). Volto a ler o poema do poeta californiano. A pele, os membros, o vapor: eis os elementos do ambiente que, no texto, se completa com a carne em contacto com o palpitar telúrico, maternal e esmagador. A voz do “eu” já não interroga, mas afirma “Este é o nosso corpo. Desenhado de pernas cruzadas pelo fogo/a beber água gelada/a abraçar os bebés, a beijar as barrigas, / A rir na Grande Terra/Saídos do banho.” Penso que também eu quero sair dessa caixa de cedro, guardar num instante a noção de totalidade, assumir uma lógica ou negá-la em absoluto, mas rir deste corpo, o único que me transporta, siga eu na Argos ou num cesto entre estações suburbanas do século XXI, acordada, mesmo que em risco de não suportar o torpor, esse invasor parasitário, retendo, embora, o sol sobre a pele e repetindo metáforas como esta até que nelas creia com convicção de fé.

(Parêntesis final, que já vai longa a conversa e não há pior para o corpo do que a fadiga, visto que até Deus precisou de refazer as forças na sequência do gesto criador e o seu filho deu o pão para consolo dos convidados. O último parêntesis será musical, espécie de refrigério do pobre bicho atordoado que sou, que prossegue, cantando – “Ó ai meu bem como baila o bailador/Ó meu amor a caravela também/ó bonitinha ai que é das penas, que é das mágoas/Sendo nós como a sardinha/A voar por cima das águas”.)