— Ninguém será esquecido. Nada será esquecido.
Verão de 1973, Arganil, num comício da Oposição Democrática, durante a ditadura. Um jovem que se esqueceu de quase tudo.
Evgénia Iaroslavskaia-Markon nasceu em Moscovo em 1902. Filha de um hebraísta proeminente que trabalhou na Biblioteca Pública antes da Revolução, acompanhou a família nas suas deslocações para S. Petersburgo, onde o pai ensinou na Universidade. Na revolução de fevereiro de 1917, adolescente, participa na libertação dos presos da Capela Lituana e adere ao Partido Unido Social-Democrata (menchevique). Estudou História em Moscovo e, depois de assistir a uma conferência da Associação Livre Filosófica, transferiu-se para Filosofia. Movida por vibrantes impulsos, decide passar fome, comendo apenas rações de guerra. E, por questões filosóficas, viver entre os deserdados das cidades, os marginais, os rufias e as prostitutas, os ladrões. Ladra entre ladrões, ela acredita que os vadios são a única classe que está segura de” jamais aspirar à tomada do poder”. Em 1921, quando decorre a revolta dos marinheiros de Kronchtadt, ela é apoiante dos revoltosos contra os bolcheviques.
Em 1922 conheceu o poeta Aleksander Iaroslavski, com o qual se casa. Iaroslavski é um poeta futurista, que cresceu em Vladivostok nos últimos anos do czarismo e aí se terá destacado na cena intelectual e depois na luta armada, durante a Guerra Civil, alistado nas hostes do mítico guerrilheiro anarquista Nestor Karandarichvili, que operava na região de Irkutsk. Em 1922, quando chega a Moscovo, junta-se a um grupo literário místico conhecido como os cosmitas ou biocosmitas, um ramo dos anarco-universalistas que acredita que as forças cósmicas do mundo poderão conduzir à imortalidade (ver modernismo).
Em 1923, na sequência de um grave acidente com um comboio, Evgénia perde ambos os pés e passa a andar com próteses. O casal dedica-se à pedagogia antirreligiosa através de palestras e debates. “Oradores itinerantes do painel anti-religioso”, é assim que depois se descreverá. Acontece então uma peripécia que marcará o futuro do casal. Um tal Gubelman cria a União Ateísta. Este indivíduo toma o pseudónimo de Emelian Iaroslavski, homónimo de Aleksander. E é destacado membro dos círculos do poder soviético. Esta confusão onomástica foi a desgraça de Aleksander Iaroslavski, que rapidamente foi proibido de realizar palestras públicas sob a acusação de veicular a pornografia.
Estes temas, a acusação de pornografia e a crença em forças místicas de imortalidade estão curiosamente na ordem do dia do esquizofascismo, uma ideologia em voga no atual círculo dominante de Federação Russa e na sua máquina mediática.
Seja como for, a proibição equivale a uma interdição de trabalho para o casal. Resolvem partir para o estrangeiro. Primeiro Berlim, em 1926, depois Paris, ilegalmente. Dão palestras em círculos de emigrados. Escrevem em publicações como o Rul (o Volante). Ela, sob pseudónimo, escreve crónicas satíricas numa rubrica a que chamou Tudo e em qualquer lugar. Sobre o lúmpen na União Soviética, os carteiristas, as tabernas, os seu temas recorrente. Em Berlim e Paris ela estuda os marginais, o seu comportamento e linguagem, as suas relações e modo de vida. Na rue de Saules, em Paris, encanta-se com o abrigo judaico para os vadios. Escreve mais tarde, que tem pena de não ter encontrado Makhno e “não ter planeado com ele algo verdadeiramente revolucionário e criminososo”. E ele escreve poesia e vai à luta com um artigo em que relata o seu conflito com a União Ateísta, onde termina dizendo que, “em virtude de uma insolente apropriação do apelido, não deseja de modo algum ser confundido com um pequeno burguês grosseirão, um estúpido oficial soviético encarregado do ateísmo governamental.”
Seja como for, o casal regressa à URSS no Outono de 1927. — Vou para que me possam fuzilar – dizia Aleksander. Denunciado, é preso em Leninegrado, julgado e condenado a 5 anos nos campos de concentração “por auxílio à burguesia mundial por atividade inimiga contra a União Soviética”. A máquina de escrever que ele transporta na mochila foi apreendida e fica em poder da GPU. Nessa altura, Evgenia passa imediatamente a viver nas ruas. Mais tarde desloca-se ao Norte, para visitar o marido. Visitas tempestuosas com as autoridades, das quais resulta um agravamento das condições prisionais de Iaroslavski, ou da sua pena. Mas na maior parte do tempo ela vagueia nas cidades, nas ruas, nos parques.
Podemos imaginá-la. Uma jovem aleijada, que se move nas próteses com ruído e dificuldade. Dorme nos parques, se o tempo permite. Rouba. Rouba com emoção. Descreve as operações, as circunstâncias, os falhanços, as capturas. As relações que estabelece com aqueles deserdados que a olham com perplexidade e algum respeito.
As suas descrições da rua Strastnaia de Moscovo, por exemplo, são fantásticas, cheias de energia, oníricas. A certa altura, sobre as mulheres que se guerreiam nas ruas, escreve: — É irritante, não que o corpo da mulher seja vendável, mas que ninguém o compre, já.
Vende flores, sem noção de preços. E a um cliente que lhe diz “que as suas flores já murcharam e a senhora também… Não a quero nem às suas flores!…” – ela responde, em voz baixa, pausadamente:
— As minhas flores pode avaliá-las porque estão à venda e avaliar-me a mim o senhor não precisa, porque eu não estou à venda.
E mais à frente escreve outra frase espantosa: — A minha intenção não é levar aos habitantes da rua qualquer nova doutrina, mas sim reforçar as suas próprias antigas leis criminosas, que foram abaladas recentemente: um ódio intransigente aos” bófias” e “chibos”, a bondade amigável (a ajuda mútua) entre facínoras…
Aleksander Iaroslavski está em Solovetsky. Solovetsky, no Norte, próximo de Arcangel, o principal porto russo do Mar Branco, tem um conjunto de ilhas que inspiraram a designação de Arquipélago Gulag, depois referida ao conjunto de campos existente na União Soviética até 1956. “O Gulag começou em Solovetsky”, escreveu Anne Applebaum. Havia já centenas de campos e milhares de presos, mas aquele era o campo privado do GPU, a temida polícia política que iria desenvolver a ideologia concentracionária. E Aleksander Iaroslavski foi um dos primeiros prisioneiros, quando ainda não havia um propósito global para a coisa, mas o Gulag se começava a desenhar. Era muito difícil chegar a Solovetsky, ao pequeno porto da cidadela, e depois às ilhas, cada uma com as suas especificidades e habitantes excepcionais. O outro ponto de conexão com o continente era Kem, que Evgenia visitou em 1930 e por mais de uma vez. Ou Arcangel. Para Arcangel, a viagem de barco durava uma noite.
Em 1929, Maximo Gorki visita o campo e escreve sobre ele. A descrição que fez, apesar de estar muitos furos abaixo da beatitude ingénua com que Jorge Amado, por exemplo, descreveria mais tarde o “Mundo da Paz”, contribuiu para a normalização na opinião pública da visão dos campos da URSS, um método novo na reeducação das almas transviadas, “passageiros salvos de um navio a afundar-se”, no aproveitamento do trabalho forçado como processo educativo. O sistema penal soviético foi ungido pelo escritor chave do realismo socialista.
O campo era um lugar sem lei, entregue à brutalidade dos guardas e à arbitrariedade dos responsáveis. À chegada, o responsável do campo dizia aos condenados a frase que os torcionários iriam repetir em todos os sistemas ditatoriais que eliminaram os opositores, da Pide portuguesa à DINA chilena: — Aqui não há lei soviética, só lei Solovetsky. Podem esquecer quaisquer direitos que tenham tido antes. Aqui temos as nossas próprias leis.
Em 1930 o campo teria seis mil presos, desde os políticos, socialistas revolucionários que talvez ainda gozassem de um regime especial, oficiais e simpatizantes do Exército Branco, proprietários rurais que tinham resistido à colectivização das terras, antigos aristocratas, “especuladores”, marinheiros que tinham combatido em Kronstadt e os criminosos de delito comum, como ela.
Ela tinha fugido de uma deportação. Viajara até Kem, mais uma vez. Aí provavelmente preparava uma fuga. A de Aleksander Iaroslavski. Foi presa de novo, enviada para o campo onde se destacaria por uma militância permanente e desordenada, finalmente perturbada pela premonição da execução do marido. Pouco antes da sua execução escreveu com o seu próprio punho, em papel do campo, o documento conhecido por A Minha Autobiografia. O documento foi encontrado sessenta anos depois, nos anos 90, em Arcangel, por Irina Fligué, então diretora do prestigiado grupo Memorial de S. Petersburgo, responsável pela sua posterior edição e divulgação. O grupo Memorial levou a cabo um gigantesco levantamento de dados relativos ao Gulag, até ter sido extinto pelo putinismo, a pretexto de uma legislação repressiva que considera que a investigação histórica independente do estalinismo é uma “atividade criminosa de agentes estrangeiros”.
A Minha Autobiografia é um pequeno texto publicado em Portugal pela editora Guerra e Paz em 2017, a partir da edição francesa das Editions du Seuil, com o título Revoltada. Tem prefácio de Olivier Rolin e engloba o texto luminoso de Evgénia Iaroslavskaia-Markon, um conjunto de documentos oficiais entre os quais um relato de um guarda e um extraordinário posfácio de Irina Fligué.
Evgénia Iaroslavskaia-Markon foi fuzilada na colina Sekirnaia do campo das ilhas Solovetski, em 20 de junho de 1931.