Querido Samuel,
Agora que te escrevo, e apesar de saber que jamais chegarás a ler estas palavras, ainda que só possa acreditar que as escutes no incerto lugar onde te encontras, como explicar, meu querido Samuel, como fazer-te compreender o abalo ou talvez a vertigem que senti ao ter descoberto, sem querer, há bem poucos dias, esta imagem, esta aparição, este fragmento de um passado há muito desaparecido? Sei que o fim se aproxima. Não esperava, no ocaso da vida, encontrar uma prova tão estranhamente intacta de um tempo e de um mundo de tal modo enredados nas minhas fibras sensíveis que é quase doloroso recordá-los. A sequência de acasos que durante todo este tempo me impediu de achar esta fotografia ter-se-á esgotado, como se o destino quisesse obrigar-me, no momento em que me sinto perto de uma espécie de libertação, a reviver o que foi abandonado, voluntariamente esquecido — os lugares onde fomos felizes sem o sabermos, as pessoas que amámos e por quem mais sofremos porque as amávamos em excesso, as alegrias e desejos e amarguras da infância e da juventude, enfim, tudo isso que parece compor a própria substância da existência.
Os nossos aniversários festejados, sempre que possível, ao ar livre, no pátio lateral daquela casa! Sei que os não esqueceste. Eu, sim, fiz por esquecer… E, sem aviso, aqui estamos todos, aprisionados, reféns da absoluta imobilidade de um instante, retidos numa ínfima parcela do espaço e do tempo. Todos nós com excepção do teu pai, sempre ocupado na sua oficina e que, de qualquer forma, evitava deixar-se apanhar pelo que achava ser uma armadilha inútil. Não posso deixar de sentir, apesar de tudo, e em parte é isso que me perturba, que nesta fotografia, de modo mais evidente que em qualquer outra, reside algo não extinto, algo que parece ainda reverberar. Olho para ela e creio ser atingida por um acontecimento distante e irrepetível. Mas tudo nela ainda cintila! Há uma voz que me diz: «A morte, afinal, não chegou aqui». De alguma maneira tudo nela está vivo e se repete, querido Samuel. Uma pequeníssima parcela da nossa vida persiste e ecoa continuamente através desta fotografia, tal como os brilhos de alguns metais não deixam nunca de reflectir os fogos que os forjaram. Deparo-me, portanto, com um certo tipo de eternidade. A superfície da imagem irradia sem cessar os impulsos luminosos dos nossos corpos e dos nossos olhares, de todas as coisas, até daquele espelho que as tuas mãos seguram. E é nesta segunda superfície prateada, nesta imagem duplamente afastada de mim mesma, que por todos os meios tento mergulhar para tornar a abraçar esse ser que tanto amei. E, assim sendo, como posso eu aplacar a avalanche de recordações da qual pretendi refugiar-me?
Sim, de facto, aqui estamos! 26 de Setembro, o almoço de anos da Irene! Ao fundo da mesa distingo aquele flectir do torso da pequena Rosa que lembrava a postura diligente de uma noviça. O rosto sempre calmo… Parece-me nunca ter chegado a perceber o que escondia aquela serenidade. Reparo na expressão um tanto ausente da aniversariante e no olhar seguro e desafiador da Isabel. Duas irmãs tão diferentes entre si! As cozinheiras pregavam, o que desgostava a nossa mãe, historietas populares de «boas» e «más» irmãs. Não puderam perceber que na altivez e teimosia de uma se misturava uma revolta obsessiva perante a parcialidade dos outros, por mais irrisórias que fossem essas injustiças, e que a brandura da outra ocultava um certo egoísmo, um certo desinteresse pelos que a rodeavam. A teu modo, sei-o bem, graças a esse dom que achamos exclusivos dos anciãos e não reconhecemos nas crianças, compreendeste, desde sempre, o que havia de essencial em cada uma de nós. Nesse tempo, somente podíamos admitir que uma tal virtude fizesse parte da nossa mãe adoptiva, a qual, de mais a mais, confundíamos com a bondade intrínseca do seu carácter. Do lado oposto da mesa vejo o cenho distraído da Amélia. Mal posso conter um sorriso, pois sei que aquela expressão trombuda que ela adoptava se desfaria em gargalhadas se lhe fizéssemos uma careta ou a beliscássemos debaixo do vestido (ouço-a, neste preciso momento, aos gritos pelo corredor, enquanto a perseguia no papel de uma fada enlouquecida agitando freneticamente a vara de condão). Revejo a face luminosa da Ester e os seus olhos azuis e os seus cabelos louros que no fim do Verão adquiriam o tom da palha seca. E ao seu lado sou eu mesma. Recordo os gestos cuidadosos na nossa mãe, equilibrando-se em cima de uma cadeira, procurando enquadrar a imagem. Tenho a estranha impressão que quando fixei o olhar na lente da máquina já adivinhava a distante circunstância do porvir — a condição em que me encontro agora! — a partir da qual testemunharia, então, aquele mesmo instante conservado numa fotografia, e, portanto, acabo por admitir que do interior da imagem também olho para aqui, para mim mesma, para este quarto e para esta cama de onde te escrevo.
Confundo as coisas, Samuel. Não sei dizer se uma fotografia pode provocar sensações e lembranças análogas às da memória, ou se, ao a contemplarmos, não estaremos, na verdade, simplesmente a reafirmar impressões passadas, as que nutrimos ao longo dos anos e distorcemos sem querer, por mais que as evidências na imagem as contradigam.
Nós as seis — seis meninas órfãs — e a mãe Ada reflectida naquele espelho e tu ali ao meu lado com um sorriso só teu, feliz por lhe teres sugerido, sem nosso conhecimento, um modo de a incluir na fotografia, algo que no teu espírito inventivo terá surgido como um divertimento, como um mero jogo de reflexos. Foi há muito tempo. A mesa da adega, a toalha de linho que a cobria, as louças de Limoges, aquele mesmo espelho da antessala, o pátio e as paredes da casa onde vivemos não existem mais. Tu mesmo partiste há muito e também ela nos deixou. Como posso eu resgatar a verdade do seu ser? Não creio que o possa fazer através do significado equívoco das palavras… Seria um pecado reduzi-la à generosidade de uma mulher que escolheu cuidar de seis crianças órfãs e a elas dedicar o resto da vida. Nem sequer há uma moral que a explique. O dever e muito menos a vaidade em «fazer o bem», esse género de orgulho que em parte caracteriza os santos, era algo ausente da sua alma. Reconheço não ter sido capaz de a entender. O enigma que antes me atormentava permanece: «Porque nos ama ela tanto?». A este enigma vinha juntar-se a culpa de não conseguir amá-la de igual modo, ao mesmo tempo que toda uma teia de pensamentos absurdos me envolvia, embora deles obtivesse como que uma espécie de prazer mórbido quando imaginava que ela poderia abandonar-nos, ou que sofria de uma doença incurável, ou que os mais improváveis acidentes domésticos lhe trariam a morte. À noite, enquanto a Amélia dormia e eu me afastava do calor do seu corpo, sem poder conciliar o sono, começavam as minhas lucubrações: baralhava a sorte, perdia-me em complicados cálculos, pensava num desejo e no seu contrário, tecia intrigas de que era vítima ou culpada, chegava a ansiar uma tragédia só para vir sentir uma dor real. Não sei por que motivo, meu bom Samuel, me atraíam ideias irracionalmente tristes e doentias. Talvez fosse vítima, se tal fizer algum sentido, do ambiente que me rodeava, talvez me fosse necessário sofrer, procurar angústias fictícias para melhor perceber os acontecimentos felizes que me eram desconhecidos. E como os mantive adormecidos durante todo este tempo!
As manhãs que agora se anunciam pelos traços luminosos da persiana deste quarto não me parecem verdadeiras manhãs, ou porque vaticinam dias informes e horas sombrias, ou porque a realidade, de facto, só se forma na memória. O frio que pairava fora do conforto da cama no nosso quarto de dormir, a alta janela com as portadas entreabertas, as manchas de luz que lentamente escorriam das cortinas brancas para o soalho, os primeiros ruídos de passos no saibro do jardim, as vozes em surdina que chegavam da cozinha e os aromas a pão quente e a café que pouco depois daí escapavam constituem para mim as manhãs límpidas de Inverno, as manhãs absolutas onde quero regressar. Acaba de me trazer o pequeno-almoço uma enfermeira de aspecto marcial. O frasco de compota que distingo na bandeja coloca-me de novo na atmosfera fragrante dessa cozinha, diante de uma taça repleta de pequenos globos alaranjados. Revejo a nossa mãe Ada a preparar a compota de tangerina que só eu e ela gostávamos. Abraço-a e ela beija-me a testa. O sabor desse doce de outrora invade-me com a sua essência preciosa onde se condensou a polpa dourada dessas manhãs; na sua consistência impregnaram-se os seus gestos, a sua ternura, o próprio perfume levemente cítrico da sua pele e dos seus cabelos.
Reencontro ainda as madrugadas estivais, os dias em que me levantava muito cedo, abria a janela e inspirava a frescura rosada da aurora. Como era mais um dia de Verão que tinha nascido e iria findar obrigava-me a prestar atenção ao desenho das árvores no céu. Do velho castanheiro queria fixar o contorno do seu tronco, os traços das suas rugas, sulcos e cicatrizes, como quem tenta gravar em si próprio o rosto de um patriarca. Mas logo me distraía ao vislumbrar o teu ágil perfil por detrás das cameleiras. Parecia-me que talvez estivesses a investigar um formigueiro ou o túnel de uma toupeira. E assim o dia prometia peripécias e raras descobertas graças à fé que depositávamos nos conhecimentos que tinhas dos bichos e das plantas e de todos os segredos daquele jardim.
Torno a olhar uma vez mais esta fotografia e apercebo-me que o teu sorriso não pode ser somente um predicado parcial e enganoso que de ti se destacou, porque é através dele que renasce em mim a tua alma e todo o passado desaparecido. «Fala, memória!», digo, então, a mim mesma. Sei que estás agora comigo porque não mais existes neste mundo. Sei que as coisas extintas são agora as minhas lembranças, os meus tesouros. Alguém escreveu que «só o que morreu é nosso, só é nosso o que perdemos». Mas em breve, Samuel, estender-me-ás a mão desse reino mágico, situado fora do tempo, onde nada decorre, onde persistem todas as manhãs e todas as estações e todas as coisas quietas na felicidade da sua condição.
A sempre tua
Ema