Número 17

8 de Janeiro de 2022

CORPO, BELEZA E SAÚDE

Fantasia

Morticia

Fantasia I

Pareces uma camponesa portuguesa.
Isto dito por um dos meus melhores amigos, estrangeiro.
Que frase tão emblemática.
Como eram as camponesas portuguesas?
Não eram como eu.
É muito interessante que eu corresponda a uma ficção de camponesa portuguesa, para alguém estrangeiro.
Sou como alguém imagina uma camponesa portuguesa.
Sou um produto da imaginação alheia, e da minha própria imaginação.
Eu sei como eram as camponesas portuguesas e não eram assim.
Sei, porque sou neta de uma.
A fotografia dela tirei-a eu, revelei-a eu. Só vejo nela beleza, como sempre vi. Uma beleza triste, mas beleza.
A minha impressão duma camponesa portuguesa.
“A tua avó parece indígena”, disseram-me várias vezes.
Fantástico.
Eu pareço uma camponesa portuguesa, e as camponesas portuguesas parecem indígenas.
Na verdade, as minhas roupas não são de camponesa.
São roupas de trabalho, sim.
Batas um pouco mais elaboradas, mais bonitas, talvez porque eu seja mais bonita, ou as roupas o sejam.
Talvez eu seja mais bonita porque estou menos cansada.
Sou uma fantasia de camponesa.
Na verdade, essa fantasia é das criadas. Das serventes. Mais ou menos servis. Mais ou menos domésticas. Mais ou menos bruxas.
A diferença entre elas e as senhoras era uma camada de tecido, que separava as que se sujavam das que não eram para sujar.
As camponesas eram outra coisa.
As camponesas existiam antes de a mulher ser inventada.


Fantasia II

A fantasia de crianças é feita para ser de conta.
Expande o mundo de forma ilimitada, com prazeres infinitos.
Ter lugar numa fantasia partilhada é ter um lugar no céu.
Fantasiar é um ato de conhecer.
Visto as pessoas com fantasias.
Doutor Enigma, o Homem Que Quer Ser Invisível, Capitão Nemo, Dorian Gray e Cândida Erêndira são alguns dos seres fantásticos que estou a conhecer. É assim que sou Aracne e Morticia e ninguém sabe quem mais virá, nem eu.
Ao crescer, as fantasias ficam mais perversas.
Ao crescer, esquecemos que são de faz-de-conta.
Ao crescer, abandonamos as nossas fantasias.
Ao crescer, damos corpo a fantasias alheias.
Ao envelhecer, as fantasias mudam.
Ao envelhecer, as fantasias são extintas.
Ao envelhecer, as fantasias são de outro mundo.
Ao envelhecer, não despimos o fato em que nos tornamos.
A realidade acumula os corpos das fantasias abandonadas.
Tantas figuras extintas que não sabemos como vestir.
Tantas figuras que ainda caminham sobre a terra.
Tantas mulheres abandonadas à eterna opressão.
Tantas mulheres sem outro refúgio além da igreja.
Tantas mulheres que nunca serão modernizadas nem pós-modernizadas.
Tantas mulheres cujos mundos ruíram.
Tantas mulheres afantásticas1 sem roupa nem costura.
Quem as pode salvar são as meninas.
As meninas que sabem costurar fantasias.

[1] https://pt.wikipedia.org/wiki/Afantasia