Número 0

10 de Abril de 2021

Feitos de carne

Rita Serra

They’re Made Out of Meat é uma história de Terry Bisson (1991), onde alienígenas nos descrevem como carne senciente e pensante. O choque e o horror de encontrarem uma civilização inteiramente feita de carne é quase inenarrável. Quem quer conhecer carne, falar com carne e saber o que lhe passa pela cabeça no período tão limitado da sua existência?

Seres encarnados, onde a cognição emerge da carne, é como a psicologia mais avançada nos vê. A viagem pela carne não se limita ao cérebro. Descobriram que cerca de 90% da serotonina, uma molécula que nos faz sentir felizes, é produzida por bactérias nos intestinos. Ora, aqui está mais um caminho para podermos ter ideias… entéricas.

A carne figura mais carne. Aliás, não pode pensar noutra coisa. Mas curiosamente, é aqui que a mente fica interessante. Quando chega à parte de encarnar, em vez de ser literal, a mente parte para a metáfora. Pensa “sou como uma barata” sem saber nada de baratas, sem saber se lhes conseguimos mesmo vestir a pele. Faz este exercício traduzindo o que é ser barata para um sistema de valor social. Ser barata é mau, é ser uma pessoa marcada para a erradicação. Pelo menos foi mau para as Tutsis. Mas no admirável mundo neoliberal onde vivemos, a procura por metáforas está a ter um novo twist. É a procura de “aprender com a natureza”.

No nosso mundo, do qual ninguém escapa, procuramos entender as espécies que sobrevivem à extinção. Procuramos entender as mais resilientes para cultivar a resiliência mental. Não queremos saber das espécies em si mesmas, que vemos como desanimadas. Queremos ser como as flores silvestres, encantadoras, que aparecem nos passeios apesar dos herbicidas e precários arrancadores. Queremos florescer apesar de. Apesar da objetificação. Apesar de nos desanimarmos mutuamente e de nos tornarmos ferramentas umas das outras. Queremos sobreviver ao campo de concentração retendo a capacidade de disfrutar da lua cheia e do pôr-do-sol.

É neste contexto que nos voltamos para Gaia, o antídoto contra a automatização da existência. Gaia, através do mecanismo da simbiose, passa a ser figurada como uma divindade benevolente e mutualista. Esta visão de Gaia é um insulto a qualquer biologia pensante. A mulher que nos deu Gaia, Lynn Margulis, conhecia o sexo e as proteínas móveis. A mulher que nos deu Gaia deu-nos a simbiose como uma indigestão planetária com gases que resulta em seres parcialmente indigeridos. Na simbiose, uma espécie invade outra e o que acontece a seguir é a história da vida. Seres que resistem a ser aniquilados no processo de “fusão”.

Como fica a natureza aos olhos da nossa mente? A simbiose é um gigantesco espectro, no qual o mutualismo está entre as poucas relações consideradas saudáveis por padrões humanos. Os bens da “empresa simbiótica” e da joint venture são frequentemente distribuídos de forma desigual. Quando um ser perde e o outro ganha, chama-se parasitismo; quando um ser ganha e o outro ignora, chama-se comensalismo (uma das minhas relações preferidas). E por aí fora.

O que podemos aprender com a natureza? Que a mente está cheia de simbioses negras — lutas até à morte, em que uma das partes está condenada a desaparecer. Sem maquinaria de vida livre. Sem autonomia para nos vincularmos. Seres obrigados a estar com outros para se sentirem completos e “felizes”.

O que podemos aprender com a natureza? Que a carne é um computador pensante que se materializa em cada interação. Que a mente da carne é feita de sarro que desaparece na agua do banho. Que a carne e a mente são efeitos, não prima causa. Que a simbiose é uma coisa tenebrosa e só consideramos a ideia aceitável por imaginarmos que dói menos.

O que podemos aprender com a natureza? Que todos os dias somos confrontados com códigos e sistemas de valor neoliberais que (ainda) nos são alheios. Que a proposta de fusão — deixar que o capitalismo nos complete a carne — aparece como tentadora. Que somos enganados, levados a pensar que nós, carne, podemos ganhar.

O que podemos aprender com a natureza? Que nem tudo é mutualismo. Que a simbiose não se faz com seres integrais. Que o amor é verdadeiramente uma infeção e um sarro que nos cola. Que a natureza cria, combina, e recombina, seres. Que cria, recria, e recombina, mentes. Que cria, recria e recombina carne.

Seria bom que a mente aprendesse a figurar bem. Seria mais apropriado e mais saudável, para a carne, ver-se como vê os seus pelos. O seu cabelo. As suas unhas. As suas milhentas excrescências. As suas extensões, colas e adesões. Seria bom que aprendesse a identificar o que lhe pode causar dano e feridas. Seria bom para a carne ver-se como um produto que tem, em si mesmo, se não valor, pelo menos validade.