Número 34

28 de Outubro de 2023

DOIS PARES E MEIO DE ASAS

Gabo e as grandezas diretamente proporcionais

MARTHA MENDES

Rodrigo García, cineasta e um dos dois filhos de Gabriel García Márquez e Mercedes Barcha, escreveu um livro sobre a perda dos pais: “Gabo e Mercedes, uma despedida”. Neste relato pessoal, comovente e generoso do processo de luto filial, Rodrigo percorre os corredores das memórias melancólicas dos últimos momentos com o pai e a mãe, duas perdas separadas por seis anos. Dedica o livro ao irmão, Gonzalo, a única pessoa no mundo que tinha, como ele, perdido aqueles pais – Gabriel e Mercedes.

Uma despedida é um passeio pela memória. A morte e a vida são duas grandezas diretamente proporcionais. Como acontece na relação entre velocidade e distância, entre gravidade e peso, também com a vida e a morte um aumento da primeira gera um aumento da segunda; uma diminuição da primeira gera uma diminuição da segunda. Foi um físico que me ensinou quase tudo o que sei sobre velocidade e distância, gravidade e peso, vida e morte – a morte é maior quanto maior for a vida. Para nos explicar a morte, Rodrigo García leva-nos num passeio pela vida dos García Márquez: caminhamos pelas avenidas da infância; conhecemos o pai sedutor e sensível à voz feminina, uma atração só abafada pela presença de Mercedes; o pai escritor, estrela mundial discreta, desconfiada da fama e do êxito literário, com um medo paralisante de perder a criatividade. O homem do mundo, incapaz de se referir ao que quer que fosse sem o relacionar com a sua cultura. Ao ver Elton John, na televisão, a interpretar as suas canções ao piano exclamava “carajo, este tipo é um bolerista incrível!” Nunca o intimidaram as referências eurocêntricas que eram tão comuns em todo o lado. Sabia que a arte verdadeira podia florescer num edifício de apartamentos em Quioto ou num condado rural no Missíssipi, e tinha a firme convicção de que qualquer recanto remoto e escalavrado da América Latina ou do Caribe podia representar a experiência humana de maneira poderosa.

A caminhada prossegue pelos corredores escuros da memória: a doença, a hospitalização, o acompanhamento clínico, a chegada dos amigos para a despedida, a mediatização do fim de vida do pai, um escritor mundialmente admirado: jornalistas, leitores e entusiastas à porta do hospital e de casa, nos últimos dias. A casa transformada no cenário de um cocktail que alimentou a multidão durante 24 horas. Bebidas e petiscos num velório cheio de mensagens comovidas a Gabo, ou Gabito, e uma intimidade partilhada com o mundo. As exéquias, a cremação. As homenagens póstumas. A incredulidade, o regresso a casa e a reconciliação com o tempo e com os espaços de sempre – espaços de vida, que a morte saqueou. (…) Sente-se o quarto diferente do resto da casa. Apesar de toda a calma, o tempo agora parece correr mais depressa, como se estivesse apressado, impaciente por dar tempo a outro tempo.

Seis anos depois, a morte de Mercedes, vencida num braço de ferro de sessenta e cinco anos com o vício do tabaco. Ao contrário do marido, manteve-se indiferente ao final. Era valentia, negação ou fingia? Foi sempre excelente nas três matérias. A mãe ansiosa e inesgotavelmente interessada pela vida. Sobre ela, o filho Rodrigo escreve o melhor dos epitáfios: a sua personalidade complexa contribuiu para a minha fascinação de toda a vida pelas mulheres, e por aquelas a quem chamam, creio que de maneira injusta, mulheres difíceis. (…) Foi uma mulher da sua época, sem estudos universitários, mãe, esposa e dona de casa, mas muitas jovens com vidas proeminentes e carreiras de sucesso admiravam-na sem reservas e invejavam a sua determinação, resiliência e a sua consciência de si própria. Era conhecida pelos seus amigos como “La Gaba”, um apodo derivado do “Gabo” do meu pai e portanto patriarcal, mas, apesar disso, todos os que a conheceram sabiam que ela se tinha convertido numa magnífica versão de si mesma”. A vida e a morte são duas grandezas diretamente proporcionais: o vivo agiganta o morto. A vida agiganta a morte.

Gabo dizia que uma das coisas que mais odiava na morte era o facto de que seria a única faceta da sua vida sobre a qual não poderia escrever. Tinha a vida toda nos livros, transformou em Literatura todas as suas experiências, mas a experiência última estava-lhe vedada – ao homem e ao escritor. Quando García Márquez morreu, os empregados da casa vieram ao quarto, à cama, despedir-se do patrão, um dos homens mais importantes da Colômbia, um dos escritores mais importante do Século XX. O filho descreve aquele encontro íntimo com a morte e com a finitude. Não há aparente vergonha nem incomodidade para expressar dor ou tristeza diante dos demais. Os limites desaparecem e todos e cada uma das pessoas tem o seu próprio e pessoal encontro, não só com o defunto, mas também com o próprio acontecimento, como se a morte fosse uma propriedade coletiva. A ninguém se pode negar a sua relação com ela, a sua pertença a essa sociedade. (…) A morte não é um acontecimento a que uma pessoa se possa habituar”.

A morte é este elemento estranho. Mesmo quando nos encontra em casa, no nosso quarto, na nossa cama de sempre. Rodrigo perguntou ao pai, então no final dos seus sessenta, em que é que ele pensava à noite, depois de apagar a luz. Penso que isto está quase acabado. Quando chegou aos oitenta, o filho perguntou-lhe: Tens medo? Gabo respondeu: Dá-me uma enorme tristeza. Saramago também conta, na carta à Avó Josefa, que ela lhe confessava com a tranquila serenidade dos seus noventa anos e o fogo da adolescência nunca perdida: O mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer.

A morte é uma enorme tristeza, mesmo quando nos encontra ainda vivos e encantados com a beleza do mundo. A morte de Gabo, de Mercedes, da Avó Josefa, do Pai Dinis – de todos os pais – não é um acontecimento a que nos possamos habituar. Mas como percebeu, tardiamente, o comandante de “O Amor nos Tempos de Cólera”, quando olhou para Fermina Daza e viu nas suas pestanas as primeiras gotas de um orvalho de inverno, e depois olhou para Florentino Ariza, e observou o seu domínio invencível, o seu amor audaz, é a vida, mais do que a morte, que não tem limites. Como me ensinou um físico, que partiu cheio de vida e encantado com a beleza do mundo, a morte e a vida são duas grandezas diretamente proporcionais. A vida agiganta a morte.