No início dos anos 60, nas férias grandes, não havia nada para fazer em Coimbra. O meu pai arranjava-me ocupações interessantes, como aprender dactilografia em teclados HCESAR, numa loja da Baixa que vendia máquinas de escrever e organizava cursos, com direito a diploma, frequentados por raparigas que aspiravam a um lugar de secretariado, no comércio. O exame final consistia numa prova em que as teclas estavam tapadas por pequenos autocolantes pretos, enquanto os examinandos escreviam um ditado, à velocidade de 300 carateres por segundo, com espaços. Encarei estas aulas de forma diletante, porque sabia que se não passasse o exame final isso não traria consequências graves. Mas agradava-me chegar cedo à loja da Baixa, como se fosse um dos empregados e passar pelo ritual de escolha da máquina, colocação da folha de papel, determinação das margens e tabulação, ouvir o ruído das teclas, o movimento do braço da letra a percutir o tipo contra a fita de tinta e o papel, a deslocação do rolo sob as letras, o momento em que a alavanca de retorno faz saltar a linha. Lamentavelmente não me lembro se cheguei a fazer o exame final. Mas ainda hoje, neste teclado QWERTY do portátil, tento escrever com as duas mãos e utilizando todo os dedos, acreditando vagamente que a elegância de movimentos das mãos pode ter alguma relação com a reunião das palavras e que uma escrita elegante reflete um pensamento correto através do suave deslizar das mãos pelo teclado.
Naquele verão, no entanto, fui organizar a biblioteca da revista Vértice. A revista era o respeitado órgão do neo-realismo, uma instituição, à sua maneira, e recebia, de algumas editoras, livros que aspiravam a uma crítica ou recensão, dizia-se assim. O meu trabalho consistia na elaboração de uma ficha onde constassem, para cada um, os dados fundamentais de catalogação. E como não tinha qualquer tipo de contrato, horário, vigilância, nem objetivos, podia demorar o tempo que quisesse. Folheava-os. Lia fragmentos. Desejava-os. Às vezes levava-os para casa ou lia mesmo ali, na mesa grande da sala que também servia para sala de reuniões da redação, embora isso acontecesse algumas noites apenas, presumia. A maior parte das coisas interessantes desses anos acontecia à noite. Eu sabia. Conhecia alguns membros da redação. O que era poeta e explicador de Matemática. O que escrevia sobre Teatro, um homem míope, muito magro e alto, com uma voz tão baixa e de tal ressonância que só podia pertencer à Galeria de Vozes Raras e aí notabilizar-se pelas frases que proferia soarem sempre profundas. Ele devia ser jovem, naquela altura, ou pelo menos tinha uma namorada jovem. Mas eu julgava que ele era Samuel Beckett, disfarçado, ou James Joyce. O rosto afilado, o queixo voluntarioso, os óculos redondos com lentes que escondiam os olhos. Quando falava comigo começava as frases usando o meu nome completo, como os meus pais faziam. Um dia deu-me um livro do dramaturgo irlandês Sean O’Casey, The Plough and the Stars, um drama passado nas guerras e revoluções da independência da Irlanda, no princípio do século XX. Eu vira, por acaso, as provas de um artigo dele sobre uma das últimas peças de O’Casey e notei-lhes as parecenças profundas. Acreditava que havia um laço clandestino que unia aquelas figuras. Mário Vilaça, o crítico de teatro que sabia o meu nome, os romancistas irlandeses, o meu incerto destino. E que se revelava por sinais como os óculos de aros redondos e outros, de que me encontrava irremediavelmente afastado porque, embora ainda estivesse em crescimento, não me parecia provável que viesse a ser tão alto, tão magro e a minha cara se estruturasse de forma tão torturada.
A revista ficava num primeiro andar da rua das Fangas. Entrava-se por um pátio que ainda hoje conserva algum mistério, cujo acesso tinha um arco abatido e um elegante portão de grades, dando acesso a outros prédios interiores onde deviam morar famílias com crianças que nunca viria a conhecer. As escadas eram de madeira e rangiam, tortuosas. À entrada estava o secretário da revista, outro homem de cara muito magra e voz sussurrada, que trabalhara numa oficina de automóveis, a Autoindustrial, passara dois anos numa cela da prisão de Caxias e depois de cumprida a pena encontrara guarida naquela função. Sei bem, porque esse homem era o meu tio Alberto. Uns anos antes, sabendo do meu apreço por Peter Pan, ele recortara as tiras que o jornal Primeiro de Janeiro publicava em folhetins, aos domingos. Colara-as cuidadosamente, vinheta a vinheta, num álbum de folhas brancas. Eu aprendi a ler nesse livro manufaturado que ele me deu. Foi a minha cartilha. Os meninos da família Darling na mansarda de uma rua de Londres, enquanto os pais vão ao teatro, ou à sessão da noite do cinema. A fada Sininho a entrar em casa deixando as crianças estupefatas. Peter Pan à procura da sua sombra. Alice, ou Wendy, a irmã mais velha, por quem pulsa inocentemente o coração infantil de Peter Pan. O capitão Gancho, esse arquivilão. O crocodilo que o segue incansavelmente na Terra do Nunca. Como se aprende a voar, quando se quer ir à Terra do Nunca.
Não me lembro de muitos livros. Mas lembro-me do silêncio, do cheiro, de páginas que tinham de ser abertas com uma faca especial para papel. E de um livro de um autor francês chamado Claude Roy. O nome era Com razão ou sem ela, A Tort ou a Raison, decorei facilmente. Fora editado pela Gallimard em 1955 e a edição portuguesa, da Portugália, devia ser do início dos anos 60. O tradutor foi Alexandre Cabral, um escritor do neorrealismo que se tornaria especialista em Camilo Castelo Branco, autor de um interessante Dicionário de Camilo. A capa, de cor azul, tinha um desenho de Luís Jardim, representando um jovem soldado que tirara o capacete e o tinha pendente numa mão, como se a guerra tivesse terminado. No canto superior esquerdo, uma rapariga de mamas redondas, como os neorrealistas gostavam de as desenhar. Este livro foi muito importante para mim. Identifiquei-me com essa gente amável e generosa, que tinha lutado, vencido a guerra e se preparava para os combates da paz.
Claude Roy fora, na juventude, um admirador da Action Française, de Maurras, uma forma de manifestar a sua recusa do mundo burguês em decomposição que criara o primeiro conflito mundial, essa grande matança. Na segunda guerra, depois da ocupação da França, Claude Roy foi feito prisioneiro, evadiu-se e juntou-se a um grupo resistente chamado Etoile, onde encontrou André Gide, Jean Giraudox, Paul Eluard, Aragon e Elsa Triolet. Fez parte das Forças Francesas de Libertação que entraram em Paris. Aderiu ao partido Comunista Francês, do qual sairia em 1956 depois da invasão da Hungria. Escreveu incansavelmente, toda a vida. Como jornalista, no Observateur e no Libération. Fez parte da geração de notáveis franceses como Camus e Sartre, Beauvoir e Duras. Menos conhecido, marcou o pensamento da esquerda não comunista que manteve uma posição crítica e combativa no período da guerra fria.
Na solidão da biblioteca da revista Vértice, a ler Claude Roy com o mesmo deslumbramento com que viria a ler o Abelaira da Cidade das Flores, estava muito longe do miúdo do Peter Pan. Construía espontaneamente uma classificação básica da literatura contemporânea. O áspero mundo operário dos dramaturgos irlandeses, que era um universo de galerias abertas para abismos, muros e silêncios, violência e linguagem rude. E o mundo mais gentil e polifónico dos escritores franceses, onde se podiam encontrar vozes como as de Claude Roy. Agradava-me sobretudo que ele não fosse um grande escritor consagrado, que os personagens fossem pessoas vulgares, capazes de factos extraordinários, leitores obscuros em salas como aquela em que lia, num primeiro andar da rua das Fangas.