O mais irrecuperável da vida são os hiatos, retomo, numa noite envolta no calor esperado da sua obrigação em aparecer, como uma certeza no calendário, bafejando a resina, repleta de sul. Ao contrário das outras, o Verão é uma estação que não está cá mas que vem. A sensação de que o nosso torrão é uniforme e enxuto e as outras temperaturas são meras nuances da distância a que nos encontramos dele. E nós esperamos, todos os anos, por um hálito que se faz hábito, que seca os ossos e os campos, que infecta o ar de brilho e vinca as sombras nos cantos como rombudos abrigos.
*
O Verão vai e volta, enquanto nós aguardamos na amenidade do ano. Vai, e volta, na forma de um mito para nos despir e suar num grande intervalo de luz. Nos vagalhões abafados, tanto são acicatados os amantes como os pirómanos, numa vontade de loucura que arde e faz arder. Tentam culpar ambas as espécies de incendiários pelo assomo de malvadez que lavra a terra arenosa, mas nem tudo o que vem da premeditação é fogo posto e a inocência nunca foi considerada um crime.
*
Quanto mais alto o Sol, quanto mais quente o ar, mais natural é estarmos nus, mais prazenteiro é estar na água. Quanto mais alto o Sol, quanto mais quente o ar, mais grosso corre o sangue. Quanto mais alto o Sol, quanto mais quente o ar, mais animal é o Homem.
*
O Verão é uma espécie de pré-experiência.
*
Guardo para mim que ele trata de se sobrepor, com um peso intrínseco, à largueza das memórias. Do passado sei que aconteceu no Verão mais do que aquilo que foi exactamente o Verão. Quando penso na minha infância a maior certeza que tenho é de ter sido criado no Verão, reclamando para si a autoria da criancice como se por um carimbo tivesse sido cravado. Lembro-me, por exemplo, de rastejar nas dunas mais do que das próprias dunas, porque deitar no chão é uma permissão de Agosto; do afastamento de casa mais do que a posição do hotel, porque Verão é estar longe; mais de lhe provar o salgado no rosto do que da sua beleza, porque me apaixonei pela paixão e pelo amargo na boca.
*
A propensão para arder: os fogos, o bronze, a fotografia queimada e difusa.
*
Estende-se a pele ao sol, esperando que queime lentamente a brancura que pende da vergonha das chuvas. Aqui podemos virar as costas ao mar e esperar que nos apontem mais um herói, das façanhas de sangue, enquanto se escreve mais um livro de História. Noutros lugares do mundo o horizonte de mar é a chegada dos derrotados e o das serras o dos assassinos. Nós, por cá, temos tido bastante sorte com os nossos historiadores. As serras são batalhas ganhas e o mar as utopias.
*
Numa sociedade que derreteu o futuro num molde para a reprodução em série, o Verão surge como aquilo que nos faz regressar ao amanhã que nasce de uma malga de néctar. Desse âmbar viscoso, na goma que se cola à superfície do corpo, nasce mais um dia poluto, corrompido porque inundado de expectativas: a da suspensão do tempo; o enegrecimento da pele; o ressurgimento do trauma.
*
O calor precipita os odores. Uns mais aprazíveis, como a fusão iodo-sargaço, os plátanos e o perfume dos cremes, outros mais dispensáveis, como a urina a evaporar ao sol ou a carcaça de um peixe. A cidade ou a praia pouco diferem neste capítulo: o Verão cobre-as do contraste exagerado da apreciação das coisas. Não há distinção entre o bem e o mal – tudo rejubila ou apodrece com a mesma intensidade.
*
As vespas debruçam-se sobre um resto de soda. As osgas patrulham a noite nas paredes ainda quentes. As cigarras emulam a trovoada seca. Os cães deitam-se ofegantes. As traças explodem nas lâmpadas e morrem na estrela errada.
*
O Verão recolhe a cidade no regaço mas atira-nos para fora dela – atira-nos para a nossa própria orla. Dei por mim a ser espuma de mar na berma de um rio.
*
Há um silêncio relativo ao Verão, essa prodigiosa energia, que Manuel Amado conseguiu pintar. O Sol está alto e o mundo frágil. Retiramo-nos da cidade para nos escurecermos. Despimo-nos e estendemo-nos ao Sol como uma oferenda. (Haverá poucos rituais tão selvagens como este.) O verdadeiro intervalo, o ócio que interessa experimentar, vem com um quê de vazio.
*
Assinalo que este texto foi escrito antes de ir de férias. Tudo o que está escrito é um exercício fragmentado de divagações, premeditações e imagens, que constroem um objecto descomunal como este lugar onde cabem todo o tipo de promessas. Importante é o leitor estar atento aos hiatos cuidadosamente desenhados, porque há uma infância antiga entre as palavras e outra, por vir, no regresso de cada Verão.