Permitam que use a palavra inglesa, bem mais «saborosa» do que qualquer outra de que me lembre: «foodie» é palavra assim redonda na boca e pequenina como uma dose para provar, e digo assim porque a modernice «degustar» não me agrada nada. Sobre comida, há duas ou três coisas que eu julgo ter aprendido na vida, mas primeiro tenho de explicar onde me situo no campo da culinária: definitivamente, pertenço ao lado dos que comem.
Praticamente, não sei cozinhar: a minha mãe era «catedrática» de cozinha, deu aulas na Obra das Mães do Porto, juntou uma biblioteca de culinária, mantinha ficheiros de receitas; o meu irmão Zé foi um cozinheiro ainda melhor do que a minha mãe, com uma intuição e persistência enormes; a minha irmã era uma doceira invejável; ora, numa família assim, que papel me restava que não fosse comer?
Sem mérito meu, mera conformidade genética, consigo comer quantidades extraordinárias sem nunca ter passado dos 65 quilos. Quando era mais novo, entre os meus colegas da Avenida de Berna, fiquei conhecido como aquele tipo magrinho que almoçava um entrecôte de 400 gramas. Mas comer não será o único crédito que invoco para falar de comida. Ter pago durante 10 anos um domínio na Internet para um blog de críticas gastronómicas, onde não escrevi quase nada, pode dizer da minha pretensão antiga e persistente de opinar sobre o tema. E dos créditos que outros me atribuem, dirá ter sido em tempos convidado pelo meu amigo João Pinto de Sousa para assessorar uma série sobre «tascas históricas» para o jornal Público. A comida é importante para mim e, por isso, as pequenas manias da restauração atual conseguem irritar-me tanto:
Pratos de autor com nomes longos e descritivos, recitados em reverente sussurro pelo(a) chefe de mesa.
Desequilibrar um prato para o fazer mais «rico», por exemplo, mais camarão do que arroz ou as gambas ostentadas sobre uma açorda de marisco.
Deturpar receitas tradicionais (bolo de bacalhau com queijo da Serra), porque duas coisas boas não se melhoram mutuamente.
A cozinha vegetariana a tentar passar pelo que não é (chanfana de soja), quem se quer enganar, quem quer ser enganado? Assumam-se, vegetarianos, «Vegan Pride» já!
Eu não sei cozinhar, mas aprendi que a cozinha é uma alquimia, onde um pequeno nada pode fazer toda a diferença. Costumo dar o exemplo da omolete e dos ovos mexidos, onde a única diferença na confeção é o gesto. Querem coisa mais subtil do que um movimento para obter sabores diferentes? Ou o valor de uma colher de chá de um ingrediente, numa panela enorme? Lembro-me de um famoso arroz de pato de um restaurante em Coimbra, que já fechou, e por isso vos posso contar o «segredo»: uma colher de café solúvel, que dá cor e abre o sabor.
Já agora, aproveito para proclamar a minha convicção de que o chamado «segredo de cozinheira» é o pior atentado cultural que se pode cometer. Andam gerações sucessivas a apurar e transmitir uma receita até ao ponto da perfeição, e logo alguém (maldisposto ou com problemas de ego) se lembra de dizer «é segredo». Isso ofende a longa linha de cozinheiros que contribuíram para fixá-la e antecipa o desaparecimento da receita, uma perda irreparável para a Cultura e para todos os foodies como eu. Não-escrita, uma vez esquecida, a receita é irrecuperável. Ao contrário de uma estátua partida ou uma pintura rasgada, o património imaterial não se pode restaurar. Só na nossa culinária regional, já assisti ao fim do manjar branco, da perdiz de conserva à moda de Coimbra, do arroz caldoso de «lulas da Arte», até do queijo da Serra verdadeiro (fui alguns anos júri da Feira de Seia), quando o fator queijeira fazia diferença. Mais uma vez, são as coisas subtis que fazem toda a diferença, raças, pastagens, temperatura das mãos…
Esta elegia a um mundo culinário perdido cabe num espaço «memorialismos», onde talvez caiba também uma advertência para o que ainda se pode perder. Por exemplo, por culpa das alterações climáticas e incompetência dos projetistas das «escadas de peixe», podemos perder a lampreia do Mondego. Basta um ano que não consigam subir o rio e desovar, e fica comprometida a espécie. E a lampreia é o melhor bicho que se pode comer, diz-vos quem já comeu metade de um jardim zoológico. E que só não comeu o jardim zoológico inteiro porque recusou algumas comidas por razões éticas: pata de urso, por exemplo. Manjar de czares e de imperadores, proibidíssimo, fui uma vez convidado para a ir comer ao interior da China e não quis. Há várias coisas que nunca fiz por razões éticas.
Creio que o meu maior problema com a comida é ter começado a comer realmente há muito tempo e já ter comido coisas extraordinárias. Nada do que hoje existe está bem à altura, por exemplo, das minhas memórias gastronómicas de infância. Porque a qualidade dos produtos diminuiu, a variedade perdeu-se ou estreitou-se e o sabor ficou «flat», se me entendem. Não, decerto não entendem, mas vou tentar explicar: a necessidade de rentabilidade na agropecuária industrial, privilegiou determinadas raças ou variedades, não necessariamente as mais saborosas, mas as de crescimento mais rápido ou as mais apresentáveis. Talvez ninguém com menos de 50 anos possa perceber isso, mas o sabor de toda a carne da minha infância, mesmo da carne corrente, era diferente porque era muito diferente a alimentação dos animais. Quando fui ao Vietname, logo após a reabertura do país, em 1993, encontrei uma cultura gastronómica riquíssima de base asiática e fortes influências francesas. Não conseguem imaginar o que é um pastel de carne feito com massa folhada que foi tendida e dobrada com manteiga muitas vezes e com um picado de vaca (ou de búfalo, que seja) verdadeiramente biológica. Para o vietnamita aquilo era comida normal de rua, para mim foi um regresso ao passado, evocador da memória dos pasteis de carne do «intervalo grande da manhã», no meu Liceu D. João III.
E que importância tem isto para me definir? Tudo. Não se diz que nós somos o que comemos? Então, queria que boa parte de mim fosse lampreia!