Começo esta aventura (a de escrever) pelo fim que lhe antevejo. Como quem foca ao longe um ponto e tem a garra suficiente para não desistir dele, simulo, esse ponto e essa garra, que neste momento parecem passos difíceis (1). A antevisão, ou o anseio, é a de montar uma nova cidade a partir daquelas que tenho vindo a habitar. Tenho uma quantidade delas como Don Juan tem de mulheres. Corrijo: tenho uma quantidade delas como Don Juan tem uma quantidade de criadores (a). E porque este mito força palpitações, deixo-me levar pelo deslumbramento sem deixar de aproveitar para lembrar a discrepância entre os muitos relatórios que se fazem sobre a forma como as cidades devem ser plenas de atracção e os poucos sobre como essa ambição de valor acrescentado ignora o apetite dos homens por elas. Se o mito cresceu incutindo à personagem o papel de um intratável encantador de mulheres, embriagado pelo seu narcisismo, Kierkegaard trata de o salvar desta forma: Don Juan não seduz, ele deseja. E o seu desejo é que seduz. Estabelece aqui a diferença entre premeditação – ele, de facto, vive sem o tempo da palavra, da reflexão, e portanto arredado da consciência – e a mera consequência. Torna-se então crucial a necessidade de abrandarmos na palavra sedução e no que de terrível lhe atribuímos sem lhe reconhecermos a generosidade que muitas vezes a acompanha (2). Isto para vos contar que gostava de conseguir decalcar a experiência das minhas errâncias colocando, por exemplo, tinta negra nos calcanhares e vos mostrar quais as ruas que cruzei, fazendo da minha vida um mapa, para que me percebessem quando digo que na tristeza que são as nossas cidades (e não há mal nenhum em ser-se triste) há uma força expectante que apenas precisa de ser, digamos, estimulada. Mas, qual a relação entre o poder do mito Don Juan com a perspectiva de uma via aberta ou de uma fachada cega? O que interessa se a cidade atrai ou seduz? Como arquitecto, não sei, porque nunca me exigiram tal coisa nesta profissão. Mas como habitante esforçado, vou desenhando algumas respostas aqui, estimando que quando esta revista fechar, reste, pelo menos, um pouco de um imaginário mais optimista da forma como podemos encará-las. Mas, o que é uma cidade? – Pelo menos isso, insistem. Garanto apenas que as cidades se fazem de um sem número de alíneas soltas, leituras não lineares, e temo que aqueles que lhes descobrem o charme são precisamente os que vão sendo excluídos desta interpretação do mito, e que depois, claro está, são forçados à constante redescoberta do tal ponto e da tal garra (3). Voltarei aqui mais tarde e com mais tempo: aos rituais, às cidades, às mulheres. E recomeçarei, sempre aqui, a partir do desejo.
(1) Esta aprendizagem devo-a aos amigos numa praia, sob a lua. Eles, mostraram-me um ponto brilhante ao fundo onde se praticavam rituais desconhecidos. Caminhámos os quatro na prata da areia, descobrindo criaturas novas que jaziam no chão, falhando, cada um de nós, a sua definição. E fomos caminhando em direcção a uma suspeita, a de que um ritual esperava por nós. Eu, admitindo aqui o meu cepticismo em relação ao valor da coisa, fui confiando neles e na lua, deixando-me por vezes ficar para trás. Andámos vários quilómetros com o peso que a areia impõe à passada. Parámos algumas vezes para encarar a hipótese de recuar, mas cada um deles, a cada uma das vezes, assumiu com afinco o objectivo e o ritual abriu-se na noite. Eles, olhavam para o jogo de luzes e labores daquela liturgia braçal que não interessa aqui identificar; eu, olhava para eles e para o que dessa magia resultou de me terem puxado por um braço; e a lua, sedutora, subia como um novo ponto brilhante ao fundo.
(2) Esta aprendizagem devo-a à minha professora de português, porque me apelidou de Don Juan em frente à turma quando falhei a primeira hora da sua aula, vindo de outra escola e de outros capítulos. Mas uma aprendizagem que demorou vários anos a eclodir, esperando que abandonasse a mãe-cidade, que me perdesse de amores por outras ruas e outros céus, que atravessasse o mundo seduzindo e deixando-me seduzir pelas estações de comboio e o burburinho das praças. Pelas temperaturas. Pelas línguas. Ao mesmo tempo que fugia a uma velocidade ligeiramente maior que a das raízes e das contas fixas para pagar, fui fotografando o mundo sem pessoas, “descobrindo a dimensão política da sedução”(b). Primeiro pela insolência de rapaz, depois com a descoberta de Atget, até, por fim, aprender a manobrar em silêncio o verde dos meus olhos, percebendo que o sedutor é aquele que recusa a boa ordem; aquele que entendeu que o que há de mais honesto é a antinaturalidade das coisas. E assim, voltando ao dia em que a minha professora me armadilhou o íntimo com essa palavra – sedução – que oscila entre a perfídia que se atribui ao artifício e a beleza de despertar nos outros matizes adormecidos, jamais voltaria a conseguir evitar olhar-me ao espelho sem questionar a minha condizência com a posição que ocupo no mundo.
(3) Esta aprendizagem devo-a às frustrações de uma disciplina que vai desaparecendo na sucessiva evolução das espécies. Os membros que eram a ferramenta de alcance, definham. As cidades foram entregues aos investidores e aos vendedores de materiais, que não só ignoram as proporções e os tempos certos de uma habitação, como nos abandonaram, a nós e às nossas belas intenções. Só que o mundo já não é para amadores. Então, está visto que esta aprendizagem é, apenas e tão-só, mais um estorvo na bagunça de uma solidão.
(a) A saber: Molière, Mozart, Byron, Baudelaire, Strauss, Pushkin, Dumas, Liszt, Shaw, Handke, quiçá Jarmusch?
(b) Renato Mezan em A Sombra de Don Juan e outros ensaios.