Alphonse Liébert
Hôtel de Ville incendié, Grande Façade, ca. 1871
Albumina e prata obre papel
17,2 x 25,8 cm
«[…] la durée est essentiellement une continuation de ce qui n’est plus dans ce qui est.»
Henri Bergson
Alphonse Liébert (1826-1913) abandonou na década de quarenta uma carreira como oficial da Marinha Francesa quando decidiu seguir e aprofundar o seu interesse pela fotografia. Na década seguinte, sabemos que se estabeleceu na cidade de Nevada (Califórnia) onde abre um estúdio de daguerreótipos. O negócio vinga, vê as suas imagens expostas e premiadas e granjeia a simpatia dos críticos. Em 1863 regressa a França e inaugura um novo estúdio em Paris. A partir de então expõe regularmente, escreve sobre fotografia e, como inventor, contribui para o desenvolvimento de algumas das suas particularidades técnicas. Foi reconhecido, portanto, como uma autoridade na matéria — o passado não lhe foi avaro.
Esta fotografia foi realizada por Liébert muito provavelmente no ano de 1871 (consta de um primeiro de dois volumes ilustrados por Liébert e com textos de Alfred d’Aunay1). A imagem mostra as ruínas de um grande edifício, o Hôtel de Ville de Paris, imponente Palácio Municipal, devastado durante a Comuna de Paris. Quando avança a supressão da revolta os communards em fuga lançam fogo ao edifício. Do palácio sobra apenas uma carcaça de pedra. Eis alguns factos.
Prevalece o hábito de associarmos à imagem fotográfica o resultado da captura de um curto instante temporal. Presume-se que um dado evento foi travado, capturado, aprisionado. Paira na fotografia a imobilidade ou quietude das coisas. E assim aprovamos a fidelidade, a autoridade descritiva ou o seu rigor informativo. A estase da imagem permite-nos a todo o momento realizar um escrutínio e, desse modo, de imediato se admite que a paralização do tempo produz um testemunho seguro. A fotografia é quase sempre uma ínfima fracção do tempo, algo de ordenado e limpo. Não é o fluir, não é a duração do tempo. É a noção do instante que predomina. De facto, é no instante que se cristalizam os elementos espaciais de um dado fragmento temporal. Com que rigor, com que detalhe é produzida essa transcrição do mundo físico!
E talvez seja pela fotografia como instante que se acentua a ideia de que espaço e tempo são sempre pretérito. A imagem do instante revela um evento paralisado, irrepetível, que pertence ao passado. Mas aqui reside algo de contraditório, uma vez que esse acontecimento passado acaba por se tornar num agora permanente. Atinge-nos agora, no presente, incessantemente, talvez adquira uma espécie de duração, porque a imagem não deixa de reverberar, não deixa de irradiar as suas ondas luminosas. Por outro lado, se tudo se transforma em passado, também se acentua em nós uma espécie de melancolia, talvez um hábito psíquico, quando a imagem do instante evoca a vulnerabilidade e a transitoriedade dos seres e das coisas.
O fenómeno fotográfico, no entanto, não se restringe ao instante. Lembremos as imagens tremidas, as exposições múltiplas, a sobreposição de negativos e os efeitos provocados pelas longas exposições. A este tipo de fotografias pertencem imagens equívocas, abstractas, suspeitas, imagens que parecem corromper a percepção normalizada que temos do tempo e do espaço. E, na verdade, que género de imagens guardamos na memória? Será um registo detalhado, estável e de contornos definidos? As imagens que a habitam pouco têm a ver com rigor, estabilidade ou coerência. São muitas vezes marcadas pelo que é indefinido e descontínuo, pela inconstância e não pela imobilidade. São imagens de algum modo nebulosas, mutáveis, imagens móveis, imagens marcadas pela coalescência de imagens múltiplas, pelo que é obscuro e subjectivo e não pela rígida exactidão do que é palpável. Diz George Santayana: «[…] everything physical is stable in comparison with the absolute instability of the images in the mind. They cannot be retained unchanged for an instante, nor recalled unchanged at any subsequent time.»
Consideremos as fotografias que resultam de longas exposições. Ao disparo fotográfico atribuímos a duração de uma fracção de segundo, embora seja possível submeter materiais foto-sensíveis a períodos de tempo dilatados (um segundo, dez segundos, um minuto, vinte minutos, uma hora). De facto, se uma câmara fotográfica, fixa a um tripé, registar uma exposição de vinte segundos, os objectos que diante dela se movam durante uma parcela desse intervalo de tempo acabam por se diluir, deixando na imagem um arrastamento, como se prescindissem de consumar a sua materialidade. Surgem, então, os efeitos visuais bem conhecidos das longas exposições: dissolução de contornos, arrastamento das formas, conversão dos corpos em espectros. Abundam os casos ao longo da história. Os praticantes das origens da fotografia encaravam estes efeitos como limitações técnicas, embora depressa se apercebessem do potencial estético, conceptual, e até sobrenatural, do erro, da deformidade fotográfica. Basta lembrar, por exemplo, o modo magistral como Atget encarava este género de «enganos».
Nesta albumina de Liébert, diante da ruína do Hôtel de Ville e na sombra de um edifício oposto distingue-se um grupo de transeuntes — habitantes reais da cidade — que vieram aperceber-se das consequências do conflito. Só que esses seres reais, em resultado da longa exposição de Liébert, transformaram-se em fantasmas, em espectros: os corpos passaram a ser algo volátil, em sublimação. O tema da guerra, a simplicidade formal do enquadramento e do jogo de luz, aquele conjunto de seres, aquele cavaleiro também ele transformado em fantasma, a sólida construção consumida pelas chamas, tudo isso, concede um carácter assombroso à imagem. A nossa habitual consciência do tempo sofre um abalo. Há como que um contacto diferente com a imagem em si mesma. Ela emite um livre-trânsito ao observador, ela insiste para que nos demoremos na sua descoberta, porque há a indizível suspeita de qualquer coisa ainda a decorrer — os eventos não estão travados, nela reside algo em mudança, uma duração, um destino em curso, um devir.
Como explicar a empatia por este género de imagens? Elas não revelam uma imobilidade artificial, mas algo de dinâmico. Não revelam a sólida corporização das coisas reais, mas a sua plasticidade. Induzem uma mudança nas aparências, não negam a transfiguração das formas. Não mostram o «momento decisivo», anunciam momentos indecisos. À essência destas imagens não se atribui uma natureza estabilizada, mas antes uma espécie de contínuo auto-movimento, um processo em constante e quase imperceptível mudança, que apenas se pressente, ou, ainda, um dissipar-se, um desfazer-se que nunca chega, na verdade, a alcançar a sua derradeira conclusão. Talvez se assemelhem a essa espécie de fugitivos que tentam libertar-se do seu próprio encarceramento.
Se a fotografia como instante nos afronta na medida em que nos recorda a precariedade das coisas, também as longas exposições acentuam essa noção de impermanência, de transitoriedade, uma vez que a nebulosidade das formas e o desvanecimento dos objectos podem ser metáforas do nosso próprio destino. Mas estas imagens trazem consigo significados múltiplos e ambivalentes: testemunham uma presença e, ao mesmo tempo, uma ausência; o tangível desvanece-se e o intangível materializa-se; apontam para a morte, para a finitude, mas acabam por remeter, simultaneamente, para a mudança, para as metamorfoses do mundo, para o movimento, para a renovação ou a repetição das coisas. Este aspecto perturba-nos ao mesmo tempo que nos encanta. É esta particularidade que aqui se deseja sublinhar. As longas exposições oferecem-nos a possibilidade de nos aproximarmos ao que parece estar a acontecer na própria imagem, a um passado em acção e entretecido continuamente com o presente ou, porventura, a essa duração que «é essencialmente uma continuação do que não é mais no que é».
A fotografia enquanto duração, assim sendo, talvez nos permita entender o tempo como um fluir contínuo e indivisível da experiência e não como uma colecção de instantes descontínuos. E este é o tempo bergsoniano, entendido como um fenómeno da experiência, o tempo subjectivo, não mensurável, distinto do tempo homogéneo e divisível dos relógios, o tempo que apresenta diferentes qualidades, diferentes intensidades.
Decerto que aqui se tentou o elogio das longas exposições, da fotografia enquanto duração, mas não a censura da perspectiva tradicional, da fotografia como instante. Pretendeu-se, simplesmente, dar relevo a um ponto de vista menos comum. Com efeito, instante e duração, apesar de ideias opostas, são duas faces de uma mesma moeda — conceitos contrários que explicam a natureza da imagem fotográfica. Talvez seja esta ambivalência que torna a fotografia fascinante. E assim a imagem de Alphonse Liébert não deixa de se inscrever nesse «instante poético» de que fala Gaston Bachelard. É pois para produzir um «instante poético», «un instant complexe, pour nouer sur cet instant des simultanéités nombreuses», que um poeta, tal como o faz Liébert, «détruit la continuité simple du temps enchaîné».
1 Les Ruines de Paris et de ses Environs, 1870-1871. Cent Photographies par A. Liébert. Text par Alfred d’Aunay. Premier volume. 1871.