Fractura Exposta

27 de agosto 2022

Irradiante, o negro (excertos)

RUI NUNES

O grande bode ocupava.

Corre. Veloz, dissolve-se na rapidez.

:

Escorregava ao longo do tronco da gamboeira,

os pés tocavam a lama do curral.

O grande bode não se mexia.

Deus desmoronara-se sem que ele se tivesse apercebido,

se calhar Deus nunca lá estivera,


Incandescente, o negro rodeia o bode

..

o outono concentra o bode, dá-lhe a cada movimento um golpe que disseca, expondo a exactidão de uma carapaça, sinal do insecto monstruoso que há na intimidade de qualquer bicho, ou de qualquer homem,

:

No seu pelo acumulam-se os dejectos do mundo:

espinhos, carraças, pequenos vermes, excrementos de pássaros, lama seca.

Envolve-o a prisão do seu desenho, o branco purulento.

..

Lê, relê, e tudo se irá realizando. Lê, relê o incêndio de Moscovo, e o fogo acabará por queimar-te os dedos e as páginas do livro. Escreve, reescreve o bode, e ele ir-se-á tornando cada vez mais sólido, mais pesado. A gamboeira que estendia os ramos sobre o curral, via-a há um ano, numa manhã de humidade, na berma da estrada, estava ali para que eu a reconhecesse, eu, que nunca a tinha visto, as gamboas a apodrecerem espalhadas no talude. A escrita faz nascer, e gera mais mortes, tornando-as provisórias: a do bode, a da gamboeira, a de Moscovo incendiada, a do  miúdo, a da aldeia. A morte de quem escreve interrompe sempre outras mortes: é este fascínio de um livro inacabado.

..

Reconstituímos o passado para não nos perdermos. Não perder estes campos cujos pormenores aumentaram até à demência ou ao pesadelo, não um crescimento mas a replicação obsessiva de uma presença. Um vírus. Ao ver a fotografia do bode descobri que ele sempre estivera no meu passado, escondido nele, crescendo nesse esconderijo com uma nitidez que eu desconhecia, dando ao presente uma raiz, perturbando quem sou, a morte a que escapei, a corrida que me aproximava, não de isto ou de aquilo, mas de cada minuto deste tempo:

Tudo o que invento, a charneca, o curral, o bode, a gamboeira, é a inevitabilidade da minha vida, a consistência irremediável do que nunca existiu

..

Este bode inventou-me até à minúcia mais extrema. E o meu passado foi essa invenção: o curral, os muros de granito, o empedrado irregular da quelha, a porta gateira.

O bode que nunca existiu ligou tudo isto

à noite que eu sabia que era como a descrevo.

O bode inventou a minha infância

E ofereceu-ma.

..

O bode espera.

A faca conhece, naquela exactidão, o lugar certo.

Reconhece-se na certeza daquela exactidão.

E também espera

..

O branco é um esconderijo.

Tumultuoso.

Um caos insaciável.

..

O bode construiu o olhar do velho

que regressa a esse animal, para não cegar:

cada um deles, criança e bode, dava ao outro a sua fome.

Eram a fome um do outro.

..

A morte é um desenho imperfeito.

Os vivos, com todo o seu tempo,

aperfeiçoá-lo-ão com o esquecimento

Irradiante, o negro, Rui Nunes, Relógio D’Água Editores, 2022

Cortesia Rui Nunes e Relógio D’Água Editores