O grande bode ocupava.
Corre. Veloz, dissolve-se na rapidez.
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Escorregava ao longo do tronco da gamboeira,
os pés tocavam a lama do curral.
O grande bode não se mexia.
Deus desmoronara-se sem que ele se tivesse apercebido,
se calhar Deus nunca lá estivera,
Incandescente, o negro rodeia o bode
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o outono concentra o bode, dá-lhe a cada movimento um golpe que disseca, expondo a exactidão de uma carapaça, sinal do insecto monstruoso que há na intimidade de qualquer bicho, ou de qualquer homem,
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No seu pelo acumulam-se os dejectos do mundo:
espinhos, carraças, pequenos vermes, excrementos de pássaros, lama seca.
Envolve-o a prisão do seu desenho, o branco purulento.
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Lê, relê, e tudo se irá realizando. Lê, relê o incêndio de Moscovo, e o fogo acabará por queimar-te os dedos e as páginas do livro. Escreve, reescreve o bode, e ele ir-se-á tornando cada vez mais sólido, mais pesado. A gamboeira que estendia os ramos sobre o curral, via-a há um ano, numa manhã de humidade, na berma da estrada, estava ali para que eu a reconhecesse, eu, que nunca a tinha visto, as gamboas a apodrecerem espalhadas no talude. A escrita faz nascer, e gera mais mortes, tornando-as provisórias: a do bode, a da gamboeira, a de Moscovo incendiada, a do miúdo, a da aldeia. A morte de quem escreve interrompe sempre outras mortes: é este fascínio de um livro inacabado.
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Reconstituímos o passado para não nos perdermos. Não perder estes campos cujos pormenores aumentaram até à demência ou ao pesadelo, não um crescimento mas a replicação obsessiva de uma presença. Um vírus. Ao ver a fotografia do bode descobri que ele sempre estivera no meu passado, escondido nele, crescendo nesse esconderijo com uma nitidez que eu desconhecia, dando ao presente uma raiz, perturbando quem sou, a morte a que escapei, a corrida que me aproximava, não de isto ou de aquilo, mas de cada minuto deste tempo:
Tudo o que invento, a charneca, o curral, o bode, a gamboeira, é a inevitabilidade da minha vida, a consistência irremediável do que nunca existiu
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Este bode inventou-me até à minúcia mais extrema. E o meu passado foi essa invenção: o curral, os muros de granito, o empedrado irregular da quelha, a porta gateira.
O bode que nunca existiu ligou tudo isto
à noite que eu sabia que era como a descrevo.
O bode inventou a minha infância
E ofereceu-ma.
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O bode espera.
A faca conhece, naquela exactidão, o lugar certo.
Reconhece-se na certeza daquela exactidão.
E também espera
..
O branco é um esconderijo.
Tumultuoso.
Um caos insaciável.
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O bode construiu o olhar do velho
que regressa a esse animal, para não cegar:
cada um deles, criança e bode, dava ao outro a sua fome.
Eram a fome um do outro.
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A morte é um desenho imperfeito.
Os vivos, com todo o seu tempo,
aperfeiçoá-lo-ão com o esquecimento
Irradiante, o negro, Rui Nunes, Relógio D’Água Editores, 2022
Cortesia Rui Nunes e Relógio D’Água Editores