Até ao Osso

26 de Agosto de 2023

Isto vai mesmo acontecer

MARIA JOÃO BENQUERENÇA

Escrever sobre o que representa correr uma maratona é, em si, uma outra maratona. Como é que uma pessoa chega aqui? Como é que há quem ache que terá interesse no que eu tenho a dizer? Bem, mas adiante! Comecei e agora terei que acabar.

Em agosto de 1984, estava eu em casa, era já muito tarde, talvez madrugada, e os meus pais viam com um enorme interesse uma corrida um bocadinho disparatada que estava a decorrer em Los Angeles (onde curiosamente era de dia, o que levantava já bastantes perplexidades à miúda de 10 anos que eu era). Pela primeira vez, ou pelo menos tanto quanto sabíamos, um português ganhou a medalha de ouro na maratona dos Jogos Olímpicos e todos sonhámos com ele e corremos com ele. Para mim, que como disse tinha 10 anos, 42, 15 ou 148 quilómetros era muito semelhante. A noção de distância veio depois, e convenhamos que nunca foi muito apurada. Mas os meus pais lá me explicaram que era aproximadamente a distância entre a minha casa e a da minha tia Lena. E eu bem sabia que a viagem de Renault 4, com os meus 3 irmãos, demorava aproximadamente 4 dias (ou 1 hora, dirão os puristas da medição do tempo…). Era uma epopeia e fazer aquilo a pé era totalmente estapafúrdio e despropositado. Porque raio se submeteria alguém a tal coisa e que superpoderes estranhos eram necessários? Bem, arrumei as perguntas a um canto e segui com a minha vida durante uns anos.

Quando nasceu o meu filho do meio (em abril de 2013) eu tinha ganho muito peso durante a gravidez e não tinha especial carinho por ele, então pensei em fazer desporto. Como não conseguia organizar-me para estar num ginásio a uma hora definida, eu que fazia 2 aulas de grupo por dia antes de ter filhos e começar a trabalhar, e como tinha colegas na empresa que corriam, decidi começar também a correr. A primeira vez foi nas Abadias, na Figueira da Foz, e foi heróico. 1,8km de heroismo. E depois a coisa foi-se descontrolando cada vez mais.

Veio uma corrida de São Silvestre e depois outra coisa e depois outra, inscrevi-me na minha primeira meia-maratona no dia em que fiz 40 anos e acabei por correr uma ainda antes dessa. Inscrevi-me no Douro e fui a Lisboa nesse ano de 2014. Foi uma sensação estranhíssima. Mantive um ritmo constante durante toda a prova, que foi muito dura, mas quando cheguei à meta e parei fiquei sem conseguir andar. As minhas pernas recusavam-se a dar 1 passo que fosse, parei ali uns segundos a tentar recuperar o controlo da coisa e depois lá consegui e passou.

A seguir a coisa continuou como com toda a gente e nasceu aquele bichinho de correr uma maratona, só uma. Aquela distância de minha casa até à casa da minha tia Lena, aquela distância épica e disparatada. O bichinho foi crescendo e crescendo e acabou em Sevilha, em fevereiro de 2020 em que cruzei a meta da maratona. 42,19 km inteirinhos a correr, mais de 4 horas e a bater na parede.

A coisa começa normalmente e lá vou eu muito ligeirinha e a sentir-me maravilhosamente, sou capaz de fazer isto durante muitas horas, mesmo muitas. Afinal não custa nada! E já vamos nós quase no meio. Acabei de fazer uma meia maratona e foi super tranquilo, estou mesmo em forma e isto não vai custar nada. Mas pronto, já chega. Agora já podemos acabar com isto e pronto. Preciso mesmo que isto acabe, dói tudo e já nem me consigo mexer. Raios, porque é que eu faço estas coisas a mim própria? Tem alguma lógica esta parvoíce? Faz sentido? Eu só quero mesmo que isto acabe, estou a morrer. Só quero morrer e acabar com este sofrimento. Já não consigo mesmo correr, vou tentar andar uns metros. Só na chegada ao abastecimento e enquanto bebo água. O Basílio não me vai deixar parar, ele não me deixa mesmo parar. Raios, porque é que eu faço isto a mim própria? Ok, faltam 7 km, se cheguei até aqui faço mais estes 7. Isto vai acontecer, será que vou conseguir? Será que vai mesmo acontecer? Eu acho que vai…

Os últimos 2 kms da maratona de Sevilha, e de Paris também, são das coisas mais mágicas que se pode viver. A assistência puxa por nós como se fôssemos mesmo o Carlos Lopes, ou a Rosa Mota, e estivéssemos a bater o recorde. Somos os maiores e ganhamos asas com aquele apoio do público que não nos conhece de lado nenhum e grita por nós na mesma. É maravilhoso!

E, no fim, olhar para o arco da meta e perceber: ISTO VAI MESMO ACONTECER! Vou acabar uma maratona, porra! Somos os maiores!!! É uma sensação única a de passar a meta da maratona, saber que corremos os 42km e demos o nosso melhor. Experimentem porque vale muito a pena, mesmo para quem, como eu, compete só porque sim e muito longe dos lugares de topo. Compito comigo própria, com a Maria João do ano passado e com a do próximo ano, somos muitas a competir ao mesmo tempo e ganhamos sempre. De cada vez batemos uma nova marca, um novo recorde e o orgulho é magnífico.