Número 5

29 de Maio de 2021

CAIXA ALTA

João Ferrand: O mar feito casa

ANDREIA M. SILVA

João Ferrand com a mãe


Nasceu há 46 anos num dia de verão e cedo adivinhou a liberdade repartida entre a casa dos avós, em Cadima, e a quinta do Douro, onde o rio marcava o compasso dos dias. Nesse balancear entre a infância e a idade adulta, João Ferrand nunca deixou de conviver com o mar: tornou-se vice-campeão nacional de Apneia com Monofin, foi nadador de alta competição, praticou surf.

Fez-se designer, empresário e formador. E, como tantos, foi-se habituando a viver cativo num bloco de betão, “com a mesma vista, os mesmos cheiros, as mesmas pessoas”. Há dois anos soltou as amarras: vendeu a casa e foi viver para um veleiro, uma espécie de “cápsula do tempo”, que o faz viajar, fundear o barco e ficar o tempo que for preciso.

Um dia, quem sabe, fará uma travessia atlântica  para explorar o mundo. Para quem traz o mar no peito, não será uma tarefa difícil.


– Que idade tem?
– Tenho 46 anos. Nasci em Coimbra a 6 de junho de 1974.


– O que recorda da sua infância?
– Pergunta difícil de resumir. Recordo tanta coisa, sempre fui uma criança feliz. Era muito dinâmico e criativo, explorador, desportivo. Recordo os bons momentos passados com os primos, as festas de Páscoa e de Natal passados em casa dos meus avós paternos em Cadima e maternos em Coimbra, bem como outras festividades em casa da minha mãe. Ela adorava receber amigos e nós estávamos sempre presentes. Recordo as férias no Algarve em família com os meus irmãos e amigos; em Mira numa casa que os meus avós paternos alugavam mesmo em cima da praia… As férias na quinta dos meus avós no Douro em tempos em que a casa não tinha eletricidade. Tenho poucas recordações do meu pai, que faleceu cedo demais, mas deixou um legado incrível, ainda hoje admirado por muitos. Acho que o sentido de humor, espírito aventureiro e desportivo herdei-os, sem qualquer dúvida, do meu pai, e foi precisamente enquanto estava hospitalizado  que vivi em casa dos meus avós Ferrand.


– De quem era a casa do Professor Ferrand Pimentel D’Almeida?
– A casa foi mandada construir pelo meu avô Ferrand, que tinha um espírito um pouco megalómano. Mas a casa é incrível.


– De quem eram os soldadinhos perfilados naquela cave?
– Os soldadinhos eram do meu tio António que era militar, irmão da minha mãe, o mais velho de 10 filhos. Desenhava primorosamente, era um génio.


– Era-lhe permitido brincar com eles?
– Não nos era permitido mexer. Os soldadinhos eram desenhados e pintados por ele. Nós assistíamos às batalhas que ele fazia, alguma com fogo real, mas estávamos proibidos de mexer nos soldadinhos. Eram sagrados.


– Onde estudou? Porque escolheu o Porto para tirar um curso superior?
– Estudei inicialmente em Coimbra, depois fui fazer o meu 11.º ano nos Estados Unidos ao abrigo de um programa de Intercambio Cultural (AFS) e fiquei a estudar e a viver com uma espetacular família americana numa cidade 20 milhas norte de São Francisco, na Califórnia. Ainda hoje mantemos contacto regular. Quando regressei fiz o 12.º com notas suficientes para entrar na melhor escola de artes da altura, que era a Escola de Belas Artes do Porto. Por outro lado, foi nessa mesma escola que a minha mãe estudou e conheceu o meu pai.


– Entretanto, é designer, formador, empresário…
– Sim, sou Designer, empresário e formador. Dei formação durante 14 anos numa escola Profissional na área de comunicação, neste momento sou apenas Designer, deixei a formação. Sou sócio de uma empresa que produz aplicações móveis e videojogos e webdesign – a WingzStudio. Tenho ainda um outro projeto ligado ao turismo que promove descidas de Stand Up Paddle no Rio Mondego, sendo neste momento considerada a Airbnb Experience em Coimbra com a melhor cotação.


– Com uma vida tão “cheia” porque e quando decidiu ir viver para o veleiro?
– Eu adoro água, pratico regularmente surf, sou vice-campeão nacional de apneia com Monofin, fui nadador de alta competição… Portanto, amo tudo o que se relaciona com água e mar. Estava farto de viver estagnado num bloco de betão, com a mesma vista, os mesmos cheiros, as mesmas pessoas. Decidi vender a casa e comprar um barco para estar mais próximo do meu elemento. Vim a velejar de Itália até Portugal. O objetivo agora é ganhar experiência e preparar o barco para um dia dar a volta ao mundo.
Além disso, o Barco não paga IMI e, mesmo com os custos da Marina, compensa viver no veleiro. No entanto, quando não estou na Marina, o barco é autónomo. É uma espécie de cápsula do tempo: quando viajamos, levamos a casa atrás, sem o stresse das viagens, aeroportos e horários para tudo. E se gostarmos de um lugar, fundeamos e ficamos o tempo que quisermos.


– Como são os seus dias no veleiro? São solitários?
– Não, a comunidade é incrível, sempre disponível e solidária. Há sempre coisas para fazer, porque eu faço a manutenção do barco e com isso poupa-se muito dinheiro. Por outro lado, tem que ser assim porque, se um dia fizer uma travessia atlântica, posso ter um problema técnico e tenho que o resolver sozinho.


– O que gostava de estar a fazer daqui a 20 anos? Ou o que gostaria de ter feito?
– O mesmo. Decidi que não irei fazer travessias enquanto a minha mãe for viva, ela sofre muito com o stresse das minhas viagens. Até lá vou-me preparando. Nessa altura faço um ou outro investimento que me permita um “income” regular e vou explorar o mundo e outras culturas pelo mar enquanto tiver energia. Conheço velejadores com mais de 80 anos, portanto… Acho que fiz tudo o que sempre desejei.



A vista a partir do veleiro de João Ferrand


Com os amigos no veleiro onde vive há dois anos



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